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Agênero é uma das diversas identidades não-binárias, na qual as pessoas não se identificam com nenhum gênero. Para falar sobre o assunto, a pesquisadora, estudante de ciências sociais e pessoa não-binária Ursula Boreal Lopes Brevilheri, que usa os pronomes femininos (ela) ou neutro (ila) e a pessoa agênero Nat Devergenes, que usa pronomes neutros (elu), exploram bastante as especificidades que envolvem essa identidade. Confira!
O que é agênero?
De acordo com Ursula, “para entender o que é agênero, assim como outras identidades não-binárias, é necessário assumir que existe uma polissemia por trás deste termo. Isso significa que o que une as pessoas que se identificam como agênero não é um caráter singular e uno, mas uma série de afinidades em torno de certas conceituações que se estabelecem”.
Desse modo, uma pessoa se identificar como agênero “pode significar uma identificação com uma ausência de gênero, com uma ausência de identificação/identidade de gênero ou até mesmo com uma perspectiva de gênero neutro”.
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Ursula explica que “no primeiro caso, a pessoa identifica a sua identidade a partir de uma ausência, negação e/ou inexistência de gênero; enquanto no segundo, estes mesmos atributos se referem, por exemplo, à negação de uma identidade ou a uma não existência de identidade de gênero”.
Por último, “o terceiro caso está mais vinculado a um posicionamento específico dentro do espectro das identidades, que é equivalente ao ponto 0 de um gráfico cartesiano (x=0 e y=0). Ou seja, um posicionamento que se estabelece em uma espécie de equilíbrio entre diferentes identificações, mas ainda dentro da gama de identidades de gênero”.
Neste sentido, Ursula destaca que “a primeira e segunda definição seriam pontos incertos ou mesmo a não inserção no gráfico/espectro, que é representada matematicamente pelo Ø. Ou seja, o conjunto vazio”.
A bandeira agênero
A bandeira que representa a identidade agênero mais conhecida é formada por 7 listras horizontais. As listras possuem a mesma altura e são utilizadas nas cores preta, para representar a ausência total de gênero; cinza, para simbolizar a ausência parcial de gênero; branca, mais uma vez simbolizando a ausência completa de gênero; e verde, representando a identidade não-binária.
Como alguém se identifica como agênero
O processo de se compreender como uma pessoa agênero é diferente para cada sujeito, pois tudo depende da sua subjetividade e da sua vivência. Para além disso, a sociedade também não costuma divulgar e ensinar sobre esses termos. Isso significa que muitas pessoas até se sentem desconfortáveis com os gêneros, mas não sabem que existem grupos e termos que definem esse sentimento.
Para Nat Devergenes, esse processo de descobrimento foi muito atrelado à terapia. Elu recorda que percebeu “que não fazia sentido querer agradar aos outros, não faria sentido ter controle das coisas que a gente não tem controle, sabe?”.
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Elu conta que costumava falar muito sobre outras pessoas na terapia, “então a terapeuta perguntava sobre o que eu sentia ou o que eu queria. E eu lembro de um momento em casa, em que pensei que eu reprimo muito meus pensamentos. Então decidi parar de reprimir eles, agora eu vou pensar o que eu quiser. Tipo, só pra mim mesmo, sabe? Sem nem exteriorizar”.
Foi então que “quando eu me imaginava, eu não imaginava uma mulher e, às vezes, eu falando comigo mesma me tratava no pronome masculino, mas não no masculino enquanto homem, sabe? Era como uma pessoa, simplesmente uma pessoa”.
Elu recorda a familiaridade causada por esse sentimento, “foi um sentimento muito familiar, que desde criança, desde quando eu era mais novi, eu não me imagino simplesmente uma mulher falando, eu sou eu falando, sabe?”. A partir dessa autoescuta, “eu dei atenção para isso e comecei a pensar que talvez a minha identidade e a minha existência não sejam necessariamente as de uma mulher”.
Entre os principais sinais de pessoa agênero que Devergenes reconheceu em si estão algumas disforias: “comecei a perceber que eu não consigo ter cabelo longo e que eu não gosto dos meus seios. Assim, ainda bem que eles são pequenos, sabe? Se eles fossem maiores, eu iria me sentir mal”, conta.
Além disso, elu comenta que prefere roupas consideradas masculinas e que começou a frequentar a academia “não pra ajudar a emagrecer, mas pra ganhar peso e porque eu quero ter um corpo grande, sabe? Então são coisas que acabam me colocando em uma expressão de gênero dita como mais masculina”.
Devergenes explica que “isso entra em conflito, porque eu não entendo a questão da limitação de gênero, mas eu acho que é justamente por eu ser uma pessoa agênero que eu posso fazer o que eu quiser, quando eu quiser. Eu tenho que me sentir mais confortável no meu corpo sem performar nenhum gênero”.
Agênero x assexual
A proximidade das palavras agênero e assexual, se dá pelo prefixo A que indica que “As duas coisas estão negando algo”, como destaca Devergenes. Sendo que a primeira diz respeito à identidade de gênero, enquanto a segunda tem relação com a sexualidade.
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Devergenes destaca que “na nossa sociedade existe esse costume de relacionar a sexualidade com o gênero e na verdade não é uma coisa junta, é uma coisa completamente separada, independente”.
Assim, as duas identidades são coisas completamente separadas, mas que pela proximidade da nomenclatura podem parecer próximas.
Agênero x não-binário
A identidade agênero é não-binária. Isso porque “a não-binariedade engloba toda a identificação que não se descreve única, integralmente e/ou cisgênero. Dessa forma, a ageneridade está presente justamente no não pertencimento a nenhuma dessas categorias”, explica Ursula.
A pesquisadora também explicou que “na bandeira não-binária, a cor preta contempla a identidade agênera”. Ela também destaca que muitas pessoas possuem gênero-fluído e “isso não impede de, em algum momento, se identificar com alguma característica cis”.
“O ponto é que o parâmetro da cisnorma possui um enquadramento binário e a não identificação ou ausência de gênero constitui uma quebra do aspecto de que é necessária alguma identificação”, finalizou.
Como é a lei para pessoas agênero
Em relação às leis, “não há legislação ou políticas públicas que contemplem, protejam e afirmem a ageneridade enquanto identificação válida no contexto brasileiro”. Isso acontece porque “a constituição do sistema jurídico em nosso país se pauta em uma lógica extremamente binária”.
Assim, “diferentes aspectos da Constituição se pautam na divisão binária para estabelecimento de critérios de aposentadoria, de efetivação de direitos e outros muitos mecanismos. Pode-se perceber que a Constituição deixa as pessoas agênero e não-binárias em um limbo jurídico e uma não garantia de direitos que, em tese, estariam garantidos a todas às pessoas”.
Apesar disso, alguns avanços vêm sendo feitos nos últimos anos, “de forma que pessoas agênero tem conseguido identificar sua não-binariedade nos Registros Civis, a partir de ações de Defensorias Públicas em conjunto com movimentos organizados de pessoas não-binárias”.
Ursula cita o caso da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, “que, em diálogo com o Tribunal de Justiça do estado, conseguiu garantir a criação de diretrizes para a retificação de não-bináries pela via administrativa, ou seja, diretamente no cartório e sem necessidade de processo judicial”.
Ela também destaca a importância do trabalho da ABRANB (Articulação Brasileira Não-Binárie), “uma organização que pauta a não-binariedade e suas demandas de maneira ampla, e que tem se feito presente nas diferentes conquistas de não-bináries no Brasil contemporâneo”.
Mesmo assim, não é possível se identificar de forma específica como agênero em seus documentos. Por isso, para mudar essa situação “é necessário que pessoas agênero que se interessem pela inserção desta categoria se disponham a levantar suas bandeiras de existência e necessidade de reconhecimento, abrindo diálogo com Defensorias Públicas e demais órgãos competentes”.
Além dessas dificuldades de “reconhecimento das identificações, ainda persistem uma série de entraves e esbarros na garantia de direitos fundamentais, como saúde e dignidade humana para pessoas agênero e não-binárias”.
Sobre isso, a pesquisadora lembra que “o Brasil ainda é o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. Assim, muitas pessoas não-binárias também são trans e vivenciam violências implícitas e explicitas, cotidianas, advindas da cisnormatividade”.
“Muito se fala em direito de expressão hoje em dia, mas as pessoas costumam se esquecer que o direito à expressão de gênero, que está contido neste conceito tão fundamental quanto qualquer outro aspecto da expressão, também precisa ser respeitado e garantido”, reforça.
Dessa forma, “cabe ao Estado, em suas diferentes possibilidades e meios de ação, contemplar a pluralidade e multiplicidade de experiências reunidas tanto a partir da não-binariedade quanto da ageneridade”, reforça. Assim, é essencial que as demandas de pessoas não-binárias sejam incluídas nas pautas públicas a partir de suas vivências e discussões. Porém, o âmbito estatal, político e de grupos da sociedade civil só podem compreender essas reais necessidades a partir do diálogo com esses grupos.
Nesse sentido, Ursula conclui que “não basta reconhecer a não-binariedade ou ageneridade, assumindo que isso englobaria todas as pautas das pessoas identificadas a partir de tais perspectivas. É preciso construir diálogos e debates públicos, de forma a contemplar a multiplicidade de existência e, por extensão, de demandas e necessidades”.
Como se referir a uma pessoa agênero
Nesse ponto, você deve estar se questionando qual pronome utilizar para se referir a pessoas agênero, visto que a língua portuguesa parece ser extremamente binária. Ursula explica que “não existe pronome correto pra ninguém, pois quem vai definir pronome correto é a própria pessoa”.
Ou seja, os pronomes com que cada pessoa prefere ser chamada dependem apenas de como a pessoa se sente em relação a isso, podendo uma pessoa agênero ser confortável com o uso de pronomes femininos, masculinos, ambos ou neutros.
Ursula ainda ressalta que “é muito importante perguntar pra cada pessoa qual é o pronome dela, pois é uma coisa que vai de pessoa pra pessoa, então é mais sobre como você se sente quando as pessoas se referem a você quando você se identifica”.
Vídeos e relatos sobre pessoas agênero
Para compreender ainda mais o assunto, é muito importante exercitar a empatia e ouvir as pessoas agênero. Assim, veja a seleção de vídeos a seguir:
Demora para se entender como agênero
Nesse vídeo, Cup conta em poucos minutos como nunca sentiu identificação com nenhum gênero e como foi o estopim para entender a sua identidade. Veja como foi o primeiro contato com o conceito de agênero e como Cup encontrou uma forma de interpretar isso.
Agênero dentro do guarda-chuva não-binário
Esse vídeo do canal Transdiário conta com a participação de duas pessoas não-binárias, uma agênero e outra bi-gênero, que contam suas vivências da não-binariedade. Esse vídeo é importante para entender as diferenças dos conceitos.
Se entendendo como agênero
Túlio compartilha como foi sua experiência de se entender como pessoa não-binária, que se identifica como agênero. Enquanto compreender sua sexualidade sempre foi muito fácil, entender sua identidade de gênero foi um processo longo.
Como se assumir agênero
O processo de se assumir sempre parece complexo, principalmente quando a sociedade tem pouco conhecimento sobre o assunto. Assim, acompanhe uma pessoa agênero que explica o modo que escolheu para explicar para sua família o que é ser agênero.
Agora que você já sabe mais sobre a identidade agênero, confira essa matéria sobre transfobia, para ajudar a combater esse preconceito tão presente na sociedade.
Victória Vischi
Jornalista e produtora de conteúdo. Fã de cultura POP com interesse em Estudos Culturais, tentando acumular o maior número possível de hobbies nas horas vagas.