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Quando eu era criança, minha família se mudava de cidade algo em torno de uma vez por ano, motivada pelo espírito nômade e inquieto do meu pai. Como consequência, eu trocava muito de escola, era sempre a “aluna nova”, começando tudo outra vez.
Essas mudanças costumavam acontecer no meio do ano, o que me fazia repetidamente encarar, desajeitada, uma turma que já tinha sua própria dinâmica. Eu era uma menina de óculos e pernas tortas, meio nerd e muito dedicada aos estudos. E que teria que fazer novos amigos. Mais uma vez.
Em algum momento impreciso da minha infância, minha mãe me ensinou uma estratégia. “Peça um apontador para alguém”, ela dizia. Eu pedia. Ano a ano pedia apontadores sem necessidade, como justificativa para um primeiro contato. Me apresentava, perguntava o nome da outra criança. Pedia para passarmos juntas o recreio. Depois de algum tempo emprestando borrachas e lápis, elogiando estojos ou lápis de cor, dividindo lanches e fazendo trabalhos em equipe, eu tinha um pequeno grupo de três ou quatro amigas, o que era suficiente para mim. Era assim que surgiam minhas amizades naquela época.
Eram, porém, efêmeras. Duravam entre seis meses a um ano, quando muito. Depois, lá íamos nós mais uma vez. Nova casa, nova cidade. Frequentemente, novo estado. Novos sotaques e palavras, eu sendo sempre um bichinho deslocado, facilmente identificável. Era a menina de fora.
Sem a facilidade que temos hoje com as redes sociais, minhas amizades não perduravam. Bastava a mudança para que deixássemos de existir uns para os outros. Digo, eu lembrava. Por muito tempo eu lembrava e sentia falta dos amigos que iam ficando em outras cidades, sempre sofria. Mas, sem qualquer contato, o sentimento passava. Eu fazia novos amigos, para mais uma vez perdê-los.
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Repeti tantas vezes esse ciclo que passei a assumi-lo quase como natural: meu primeiro encontro com alguém já trazia em semente a despedida. E minhas amizades passaram a ter certas cores de melancolia. Eram a tristeza e a saudade antecipadas de uma relação cujo fim eu já via como certo, bem ali, virando a esquina do horizonte.
Foi assim por muito tempo. Até que não mais.
No final da minha adolescência, meus pais se divorciaram. Meu pai seguiu viajando como sempre fez, mas minha mãe se estabeleceu. Meu irmão e eu, vivendo com ela, conhecemos então a experiência radicalmente nova da permanência, do estar e continuar.
É muito frequente que vejamos na ficção personagens que querem viajar, conhecer o mundo. Criar raízes é geralmente o oposto do que se tem como grande busca. Mas o meu desejo era exatamente esse: ficar e criar laços.
Com o tempo, fui conseguindo. Hoje tenho algumas amizades de mais de quinze anos. Outras de sete, cinco, três. Amizades com quem vivi muitas coisas, com quem realmente me abri, coisa que não aconteceu na infância. Foi só a partir de então que eu entendi que amizade é estar à vontade na sua própria pele ao lado de outra pessoa. Amizade é se deixar vulnerável com plena confiança de que a outra pessoa não vai te ferir, não vai aproveitar dessa vulnerabilidade para te machucar.
Além disso, amizade é cultivo.
Ela não existe por si só, apenas por existir. Precisamos regar, adubar, podar as folhas secas. É todo um cuidado em que eu, vivendo amizades com ciclos de vida sempre tão curtinhos, não fui muito treinada. Então até hoje tateio, tentando aprender nos dedos a necessidade de cada cultivo que me proponho a fazer.
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Nem sempre é fácil. Muitas vezes eu me pego pensando que deveria e gostaria de ser mais presente na vida de um ou outro amigo, às vezes sem saber bem como fazer isso. Como manter o vínculo? Eu entendo que as amizades têm ciclos e fases, afastamentos naturais, reaproximações, muitas vezes mediadas pelas circunstâncias da vida em um determinado momento. Mesmo assim, a dúvida sobre o que é necessário investir de afeto sempre paira: será que eu sou a melhor amiga que eu poderia ser? Eu me pergunto bastante.
Outra questão é que, para mim, é difícil desacostumar do hábito de conceber as amizades sempre como fatalmente ameaçadas por um irremediável final – e não me distanciar um pouco também, quase como uma defesa. Permanecer não é só um desejo, é também um processo e um aprendizado. Mais do que isso, me relacionar com quem quer que seja é sempre um constante aprender.
Não existe um manual sobre como lidar com amizades e, ainda que houvesse, não seria possível que fosse um só. As amizades são tão diferentes quanto são diferentes as pessoas. A amizade é uma revolução silenciosa, ela se opera miudamente, no cotidiano, nos detalhes e diferenças que cada conexão apresenta. E, no fim, acredito que essa é justamente a maior beleza de sermos e estarmos entre seres humanos: podemos nos aprender uns aos outros na convivência e nesse desejo de permanência que alimentamos em conjunto.
Tendemos a valorizar mais as interações românticas e os laços sanguíneos na nossa sociedade. Colocamos muita expectativa nessas relações e, talvez por isso, elas por vezes nos frustram. Além disso, com a idealização, também acabamos tolerando coisas que não deveriam ser toleradas. Vale lembrar, nesse sentido, que a maioria das violências contra a mulher e a criança, por exemplo, ocorrem dentro desses dois espaços – o das interações românticas e o familiar.
No caso das amizades, se por um lado nós nem sempre as valorizamos o suficiente por supervalorizarmos esses outros tipos de relação, por outro, a amizade não é um espaço em que aceitamos tão facilmente a presença da violência (de qualquer tipo). Uma “mancada” de um amigo ou amiga – especialmente quando envolve traição ou violência – pode ser muito mais difícil de perdoar do que a de um interesse romântico, por exemplo.
Tenho conversado muito com minhas amigas sobre a importância das amizades e o quanto é fundamental que essas relações sejam mais centrais na nossa vida. A ideia de que “os amigos são a família que escolhemos” faz cada vez mais sentido para mim, até porque, mesmo quando temos muito afeto pela nossa família de sangue, os laços com os amigos se dão a partir de um nível mais sutil de identificação. É uma conexão afetiva, intelectual e – por que não dizer? – espiritual. A ligação com os amigos é uma ligação que envolve decisão, ação ativa. A relação consanguínea acontece à nossa revelia: não é uma busca, ela existe fora do nosso espaço de escolha.
Não quero dizer com isso que as relações familiares não podem ser sinceras e profundas. Frequentemente, elas também carregam muita identificação e afeto, o que é lindo. Mas nem sempre é assim, e é importante normalizar que podemos não nos dar tão bem com nossa família como nos damos com nosso círculo de amigos – e tudo bem. Partir desse princípio também nos ajuda a evitar dores e traumas nascidos dessa idealização da relação familiar.
O mesmo serve para as interações românticas: há pessoas que só conseguem ter relacionamentos amorosos curtos durante a vida, mas cultivam amizades duradouras. Também há pessoas que, por idealizarem a interação romântica, acabam aceitando ser tratadas, dentro de um relacionamento, como não aceitariam ser tratadas por qualquer outra pessoa. É algo a se prestar atenção.
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E, assim como com as relações familiares, não estou dizendo que a relação romântica é “menor” do que a amizade. Até porque também há aqueles casos especialíssimos em que uma interação romântica profunda coincide com uma amizade real (um sonho meu, confesso). A questão aqui é muito mais a de que precisamos avaliar todos esses relacionamentos da mesma forma, tanto no lado positivo, de valorização, quanto no sentido de nos defendermos de situações que não aceitaríamos em outros contextos, mas que acabamos tolerando por idealizarmos um tipo ou outro de vínculo.
Valorizar as amizades é valorizar esse ninho, esse abrigo que fazemos uns para os outros de modo tão despretensioso e livre. E, repito: a amizade é uma revolução silenciosa. Muito do que eu sou hoje vem das minhas interações, do meu aprendizado amoroso com os amigos e amigas que passaram e, principalmente, os que permaneceram.
Então, este texto é uma homenagem e uma celebração a quem tem feito parte desse meu círculo e que tem, dia após dia, me ensinado a cultivar. Amigos, vocês também têm ninho aqui.
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P.s.: apesar de ser uma homenagem para todos os meus amigos e uma celebração da amizade de modo geral, este texto também é, em especial, um presente para uma amiga que aniversariou ontem, e para mais três, duas amigas e um amigo, que fazem anos até o final do mês. Sou muito grata pela presença de cada um na minha vida.
Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três. Escrevo a newsletter Versilibrista.