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Políticas públicas. Uma expressão muito disseminada, mas que nem todos entendem. Antes de entrarmos no assunto desta coluna, vale responder: o que, afinal, são políticas públicas?
No sentido mais usual, podemos compreendê-las como conjuntos de ações e decisões tomadas pelos governos (em todas as instâncias) para assegurar certos direitos para vários grupos da sociedade ou para um segmento social, cultural, étnico ou econômico específico. Assim, as políticas públicas visam assegurar direitos presentes na Constituição, mas que não necessariamente são praticadas de fato.
Quando se trata da criação de políticas públicas para a população LGBTQIA+, que é o foco desta reflexão, o primeiro ponto a ser levantado é que ela depende da disponibilização de informações sobre esse grupo. A invisibilidade dessa comunidade tem raízes culturais profundas e a divulgação de dados oficiais, com um perfil completo, poderia colaborar para evitar discriminações e violências.
Organizações como a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) e a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), entre outras, já formalizaram inúmeras solicitações ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para a inclusão de perguntas sobre orientação sexual e identidade de gênero nos questionários do Censo Demográfico, mas o processo caminha a pequenos passos.
Primeiro, em 2010, o IBGE contabilizou os casais homoafetivos. Depois, em 2019, em parceria com o Ministério da Saúde, o IBGE incluiu na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) uma pergunta sobre a orientação sexual das pessoas com idade igual ou superior a 18 anos. A pergunta foi “Qual é sua orientação sexual?” e as possibilidades de respostas eram: heterossexual, bissexual, homossexual, outro, não sabe, ou recusou-se a responder. Observem que os assexuais e pansexuais, por exemplo, não aparecem como possibilidade de resposta. Também não havia nenhuma pergunta sobre a identidade de gênero.
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Em 2021, o senador Fabiano Contarato (Rede-ES) apresentou um Projeto de Lei (PL n° 420) sobre a inclusão de perguntas acerca desse tema no Censo do IBGE. Contarato justificou seu PL afirmando a necessidade de os órgãos públicos implantarem e efetivarem “ações e investimentos para combater a violência, a discriminação e a marginalização que sofrem lésbicas, gays, bissexuais, trans e travestis, queers, intersexuais, assexuais e todas as demais existências de gêneros e sexualidades”. Não espanta, porém, que esse PL esteja tramitando vagarosamente no Senado na gestão do atual governo.
Nos últimos anos, o IBGE também não avançou em nada no que se refere a formatar uma pesquisa sobre o perfil completo da população LGBTQIA+. Essa situação e a pressão do movimento gerou inclusive a judicialização da questão. Ainda neste mês de junho, a Justiça Federal do Acre determinou que o IBGE incluísse perguntas sobre orientação sexual e identidade de gênero no Censo Demográfico que acontecerá em agosto próximo. O Censo deveria ter sido realizado em 2020, mas atrasou, devido à pandemia do COVID-19, a falta de verbas e o desinteresse do governo federal pela produção de conhecimento. O IBGE declarou que o “assunto vem sendo discutido internamente há algum tempo, mas ainda não se chegou a um consenso sobre como coletar as informações sobre identidade de gênero e orientação sexual”.
De fato, é muito importante quantificar e qualificar a população LGBTQIA+, identificando necessidades e interesses comuns, traçando seu perfil social, geográfico, cultural e econômico para saber quantos são, qual sua renda, qual é o índice de mortalidade, quais violências sofrem, se acessam a educação e a saúde, quais arranjos familiares constituem etc. Essas informações trazem visibilidade a essa população e, a partir disso, é muito mais fácil exigir direitos fundamentais que muitas vezes lhes são negados.
Os primeiros levantamentos foram experimentais e provavelmente houve subnotificação. Os próximos talvez ainda sejam, uma vez que muitos problemas podem ocorrer. Entre eles, há o fato de que algumas pessoas preferem não responder ou simplesmente não sabem determinar qual é a sua orientação sexual. Há também a dificuldade de o morador que atende ao entrevistador responder pelos demais do domicílio. Por exemplo, uma mãe pode não saber a orientação sexual e a identidade de gênero dos seus filhos. Porém, ainda que isso diminua a precisão da pesquisa, não a torna menos fundamental.
Talvez, a dificuldade maior ocorra porque as pessoas que fazem parte da comunidade LGBTQIA+ podem não querer tornar público esses dados em função do desconhecimento de como essa informação será utilizada ou por medo de discriminação. Afinal, autodeclarar sua orientação sexual quando esta difere da heteronormatividade não é algo simples. Essa autodeclaração pode ser considerada, inclusive, um ato político, já que vivemos num país que criminaliza a diversidade.
Todas essas questões são muito complexas e requerem a melhoria das metodologias de pesquisa, maior preparação dos recenseadores e campanhas de esclarecimento da população para quebrar barreiras e preconceitos na captação das informações. Ainda assim, divulgar dados completos sobre essa população pode contribuir para que o poder público olhe com mais cuidado para a população LGBTQIA+, sem apagar suas múltiplas identidades. A exclusão social, o preconceito e a subordinação de sexo, gênero e orientação sexual, bem como os altos índices de violência que atingem essa parcela da população, precisam ser urgentemente enfrentados pelo poder público.
Enfim, as estatísticas são imprescindíveis para conhecer o perfil da população LGBTQIA+, identificar suas necessidades e desenvolver políticas públicas eficazes. Se o IBGE focalizar o tema, será um passo importante para avançarmos no debate das questões de gênero no país, pautando-o em evidências empíricas. Não incluir esses dados no próximo Censo adiará por mais dez anos a solução desse “apagão” de dados.
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Fecho esse texto lembrando que a pauta principal da população LGBTQIA+ no Brasil é, sobretudo, o direito à existência e à sobrevivência. Nesse sentido, precisamos dar passos muito mais longos do que os que vêm sendo dados até aqui.
Doutora em História, mestra em Educação e graduada em Pedagogia. Professora aposentada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mantém-se na luta cotidiana pela educação de qualidade, democrática e para todos.