COLUNA

A (re)volta dos memes e o que Anitta e a política brasileira têm a ver com isso

Anitta

É fato: os memes já fazem parte da nossa forma de nos comunicarmos. Mas, como lidar com isso, especialmente em ano de eleições?

A história começa assim: alguém publica algo na internet. Pode ser engraçado ou não. Uma frase, um vídeo ou imagem. Um passo de dança. Segue-se a isso um não-sei-quê misterioso que acontece no coração da internet, e essa publicação é replicada. Compartilhada, copiada, parodiada. Vira meme. Ganha novos contextos, desdobra-se à exaustão. Repito, à exaustão. Ninguém aguenta mais. Então, o meme morre.

Outra história é a primeira mesmo e começa assim: alguém publica algo na internet, engraçado ou não, frase, vídeo ou imagem. Dá-se o mistério, a publicação responde a algum obscuro desejo do internauta, que o espalha. Repete-se a disseminação, a publicação vira meme. Há uma pulsão de reprodução, queremos reencenar infinitamente a sensação primeira que a publicação causou, o riso, o prazer. Mas é impossível. A repetição começa a incomodar, já não desperta em nós a mesma satisfação. E o meme morre. Mas outro já surgiu, e outros, e mil mais. É uma estrutura. É uma linguagem.

A palavra “meme” é uma abreviação de “mimeme”, que vem do grego antigo mīmēma (μίμημα), e significa “coisa imitada”. Um dos primeiros usos da palavra “meme” foi no livro “O gene egoísta” (1976), de Richard Dawkins – ou seja, bem antes de a internet existir. O autor usou essa palavra para tentar explicar como as ideias são replicadas, como se alteram e evoluem.

Nas redes, os memes têm duas características principais: a reprodução criativa (em paródias ou remixes, por exemplo) e a intertextualidade, já que os memes se conectam a vários elementos da nossa cultura, às vezes bastante diversos. Ligar algum episódio da política brasileira atual a uma cena de um filme alemão retratando a queda de Hitler é apenas um exemplo de conexão de referências aparentemente distantes, mas que funcionam muito bem juntas (e, sim, esse meme existe).

É claro que, como em tudo que envolve a criatividade humana, também com os memes há aquele momento em que começam a surgir ideias cada vez mais abstratas e nonsense, em relação às quais é difícil entender por que se reproduzem. Há um vídeo recente de um peixe nadando em círculos em um aquário, cantando “meu Deus, meu senhor, me ajuda, por favor”, que, para mim, ilustra bem essa categoria.

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Apesar disso, mesmo esses memes sem sentido intrínseco ganham significado para nós – a partir de outros memes também sem sentido que vieram antes daquele e estabelecem intertextualidade com ele. Creio que até o fato de esses memes específicos não terem sentido em si mesmos nos incentive a usar a criatividade para estabelecer conexões entre eles e nossas próprias vidas e cotidiano. Afinal, quem é que, metaforicamente, nunca se sentiu como o tal peixe do vídeo?

A cadeia comunicativa das ideias criativas é um objeto de observação incrível e isso é tudo muito interessante quando pensamos no meme como um impulso natural da criatividade humana. É uma linguagem surgida no espaço da internet e que às vezes nos deixa surpresos com a rapidez de raciocínio que algumas pessoas têm.

Mas os memes não são só isso.

Digo, não em uma sociedade capitalista, e sendo o capitalismo essa estrutura plástica, que absorve e se adapta, mudando sempre para continuar o mesmo. A grande geleia em que nos movemos.

É aí que o meme passa a ser até um pouquinho assustador.

Y no te voy a envolver

Ok, vamos pensar em um exemplo prático: Anitta. Para já me defender de qualquer ataque de “anitters” apaixonados, fique claro que eu adoro a Anitta. Ela é uma artista multifacetada, criativa, decidida, focada, e talvez já tenha se tornado a mulher brasileira mais conhecida no mundo. Gosto tanto da figura dela quanto de suas músicas, e poderia escrever textos e mais textos sobre ela, a partir de várias perspectivas.

Mas, aqui, quero falar sobre como a Anitta soube usar a internet e o meme como estratégia comercial – exemplificando a plasticidade do capitalismo em absorver e adaptar novas linguagens às suas estruturas. A história é a mesma do começo deste texto: ela posta um trecho da coreografia de uma de suas músicas novas. Um passo difícil, diferente, engraçado. Outras pessoas tentam reproduzir, falhando ou não. Ela replica essas tentativas em suas redes sociais. Estimulados pela repetição, ou talvez pela expectativa de ter seu vídeo compartilhado pela Anitta, outras pessoas engrossam o caldo. Começam a surgir as brincadeiras, as piadas, as paródias. E Anitta vai parar no primeiro lugar entre as músicas mais tocadas do Spotify. Xeque-mate.

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Outro exemplo é o recente boom de um filtro do TikTok que deixa as pessoas com cara de choro. A sequência foi semelhante: Anitta postou um vídeo com esse filtro aplicado nela mesma em várias situações diferentes. Já havia a proposta de ser engraçadinho, e lia-se na legenda (em inglês) algo como “quando você teve um término difícil, mas sua vida tem que continuar”. Hoje, dez dias depois de sua publicação, o vídeo já completou quase 23 milhões de visualizações totais, e o filtro de choro se espalhou por todas as redes sociais, usado nos mais variados contextos. Meme.

São apenas dois exemplos, e eu poderia trazer muitos mais, como o das capas de seu álbum “Versions of me” e do single “Girl from Rio”, também explorados como memes nas redes sociais. O fato é que tudo isso mostra o poder muito sutil que Anitta tem como alguém que pode direcionar as tendências, as opiniões, os desejos de compra e a própria cultura contemporânea, dentro e fora da internet. E isso tudo a partir dessa estrutura/linguagem replicável e cômica do meme, que é cada vez mais o DNA de praticamente todas as redes sociais.

Quando falo sobre isso, não quero fazer juízo de valor, apesar de trazer a “plasticidade do capitalismo” e a “manipulação de desejo de compra” para dentro do texto. Não estou fazendo uma crítica à Anitta, veja bem, acho até admirável sua forma de se apoderar dessa linguagem para vender sua imagem e sua música. Ela entendeu que o capitalismo já incorporou o meme e usou isso a seu favor.

Ao mesmo tempo, acho importante perceber como essa dinâmica funciona para não sermos controlados passivamente, replicando e replicando memes sem qualquer criticidade. Sem refletir sobre o processo, acabamos nos tornando a famigerada “massa de manobra” (ou “massa de compra”, no caso de intenções comerciais). Para mim, é justamente aí que mora o perigo.

Quando o meme e a política se encontram

Precisamos ser críticos ao lidar com a linguagem do meme porque, assim como Anitta, outras pessoas e grupos também já entenderam como ela funciona. E entendem como funciona o ser humano, a cultura humana.

Para trazer mais um exemplo prático, voltemos quatro anos, para as eleições de 2018. Nessa ocasião, os memes foram largamente utilizados para fazer campanhas negativas apócrifas, ou seja, nenhum candidato assumia a autoria delas, mas funcionavam como estratégias para atacar os oponentes e aumentar a própria popularidade.

Além disso, não havendo por parte dele nenhum compromisso com a verdade (por seu apelo de entretenimento), o meme acaba conversando com as pessoas num nível muito mais subjetivo, respondendo justamente às ideologias, preconceitos e medos que certos grupos carregam.

Isso também é perigoso porque, incorporando o meme ao discurso político (e aos debates sobre política), passamos a ver apenas humor e desinformação onde deveríamos encontrar racionalidade e dados. Além disso, o deboche, a ironia e o sarcasmo – elementos muito relacionados à linguagem do meme – também são assumidos como ferramentas para evitar certos assuntos e estabelecer uma aparente superioridade em relação a um concorrente ou aos apoiadores dele. Não há debate de ideias. O que há é uma guerra de memes e figurinhas de WhatsApp (e o seu “grupo da família” provavelmente é um exemplo clássico disso).

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Essa situação, porém, não se restringiu à última eleição. Diversos jornais já apontaram que, para as eleições de 2022, o uso de memes está entre as estratégias eleitorais para atrair um público mais jovem, ao lado de podcasts e lives. Os candidatos focam, assim, no eleitorado mais jovem, que ainda não têm histórico de votar sempre em um mesmo partido e podem não ter tanta memória pessoal ou conhecimento histórico dos conflitos políticos pelo qual o Brasil já passou.

Além disso, esses políticos também entenderam que, falando (positiva ou negativamente) sobre assuntos em alta, a chance de serem replicados e alcançarem mais gente é maior. É aquele ditado, “quem não é visto, não é lembrado”. Ser visto, mais do que ter suas propostas conhecidas: é isso que tem força na internet quando se trata de política.

O meme não vai deixar de existir. Eu disse que ele é uma linguagem, mas poderia muito bem ter dito que é, na verdade, como a nossa linguagem (humana) evoluiu em tempos multimidiáticos. O que importa manter em mente é que nenhuma linguagem é realmente neutra. O modo como nos comunicamos, na internet ou fora dela, está carregado de cultura, de nossas visões de mundo, de nossa ideologia.

A palavra livro, por exemplo, vai muito além de um objeto com páginas em que se inscrevem palavras. É uma representação de conhecimento, entretenimento, afetos. A palavra livro carrega toda a literatura do mundo em semente. E é assim com cada palavra de uma língua, e com cada uso de nossa linguagem. Estarmos sempre atentos a tal fato é uma responsabilidade e uma missão.

Dito isso, sigamos para a próxima dancinha do TikTok. A história começa assim: alguém publica algo na internet…

***

P.s.: Os primeiros dois parágrafos deste texto (e o último) poderiam ser considerados “memes”, no sentido básico de parodiarem outro texto e se repetirem estruturalmente. A referência é o conto “A quinta história”, de Clarice Lispector, um conto curto, cuja leitura eu recomendo. O conto também tem uma “estrutura de meme”, por se basear em repetições que se fixam na memória do leitor. Clarice pode não ter conhecido a internet, mas conhecia o ser humano e suas linguagens como ninguém.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três. Escrevo a newsletter Versilibrista.