Uma das estruturas mais comuns de narrativa é aquela que começa com um momento de paz, logo interrompido por algum acontecimento que rompe esse estado de coisas para que a história seja posta em movimento. Como se diz em várias teorias da narrativa, está ali o nó da história.
Arrisco dizer que essa é a narrativa com a qual estamos mais acostumadas. Tanto que, se o nó não surge logo em uma história lida, ouvida ou assistida, dizemos que: ‘não acontece nada nessa história!’ – como se apenas o caos e o desequilíbrio de uma situação fosse um algo, como se as coisas estarem bem não contasse, não fosse suficiente.
Curiosamente, essa mesma sensação se expande para os mais diversos campos da nossa vida. Um exemplo pessoal: nos momentos quando eu estou mais satisfeita (no trabalho, afetos ou saúde, o que for), sempre me vem essa sensação de haver algo à espreita, algum evento que fatalmente destruirá meu estado de felicidade. E pode ser qualquer coisa, uma briga, um acidente, uma catástrofe climática, uma invasão alienígena, um apocalipse zumbi. Volta e meia, para conseguir realmente aproveitar o momento, preciso respirar fundo e afastar essa sensação de irremediável, de que algo está às vésperas de acontecer para me arremessar fora do meu estado idílico de ânimo e me lançar mais uma vez a um período de preocupação ou sofrimento. Afinal, como é possível estar feliz?
E não é só isso. Existe ainda certa culpa que surge agarrada ao sentimento de felicidade. Ela vem miúda, como uma espécie de desmerecimento. No fim, a gente se pergunta: com tantas coisas tristes acontecendo ao redor, será que é justo estar feliz?
As narrativas do mundo não nos educam para a felicidade. E não estou falando apenas de literatura, sabe? A Bíblia, por exemplo, é um grande compilado de catástrofes, dores e castigos, um grande estimulador de culpas. Você nem pode estar curtindo de boa, que, do nada, pá! – toma uns gafanhotos. Ou um dilúvio. Uma crucificação. A paz não é uma opção.
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Tenho esbarrado de vez em quando com essa reflexão. Como um gato, agarro essa ideia, fico brincando com ela, olhando-a por todos os lados, até enjoar. Uma das conclusões que eu tomei para mim é que nós, enquanto sociedade, não somos muito adaptados ao fato de a vida ter, sim, altos e baixos – e que isso é um movimento natural, sem que os ‘baixos’ sejam uma consequência ruim de um momento anterior de felicidade. Nem tudo é causa e consequência, nem tudo está ligado. A vida não é uma balança de apenas dois pratos, onde ou está tudo muito bem ou tudo muito mal. Nós temos vários pratinhos e precisamos naturalizar que eles nem sempre estarão nivelados para o mesmo lado. E se nós, individualmente, temos tanto para equilibrar, imagine isso em relação ao mundo. São muitos e muitos pratos para alinhar, indo para cima e para baixo, numa alternância contínua entre alegrias e tristezas. Não dá para controlar tudo. Consequentemente, essa movimentação não pode impedir que vivamos nossos momentos de felicidade sem receio do que virá depois.
Até porque sempre vai acontecer algo. Seu cachorro vai morrer. A gente pega doença mesmo, acidentes acontecem. As pessoas envelhecem e morrem. São coisas que podem acontecer, em um rolar de dados. A gente só não pode dar mais peso a essas coisas do que elas realmente têm. Está tudo bem viver um momento feliz. Ele não é – ou não precisa ser – a véspera de uma derrocada. A gente não precisa ficar o tempo todo na defensiva.
Está tudo bem.
Eu sei que não dá para generalizar. Há coisas que acontecem e que podem ser realmente muito ruins, desestabilizando vários pratos das nossas balancinhas. Desconsiderar isso leva a gente para um papo meio coach, eu sei, e eu tenho calafrios só de pensar em coach. Mas talvez a gente precise aceitar que momentos felizes são só isso mesmo: momentos felizes. E podemos experimentá-los no que eles são. É um pouco daquilo de viver o momento presente, sabe? Ser, estar e sentir o momento. Bem good vibes assim, sim, senhor.
Então, que fique claro e dito: é permitido ser feliz. Nem que seja só em um pratinho da nossa balança. E mesmo que algum outro pratinho possa virar de uma hora para outra. Deixemos as coisas acontecerem no seu próprio tempo. Elas vão acontecer mesmo, estando nós felizes ou não. E certamente não vão pular de trás de uma moita para estragar nossa festa.
Afinal, já diz o ditado: a cada dia basta seu mal.
E basta.
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Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três. Escrevo a newsletter Versilibrista.