|
Na redação onde eu trabalho, temos um chat para comunicação interna da equipe em que, por vezes, trocamos umas irrelevâncias. Dia desses, a Bruna, que além de roteirista, redatora, mística e quebra-galho geral, é nossa provedora de assuntos bizarros para fins de entretenimento, mandou uma matéria em que líamos, já na manchete, que “só 3% dos homens brasileiros se acham feios”. Essa informação era curiosamente complementada com a informação de que um em cada dois homens respondeu à pesquisa dizendo se achar bonito. Havia mais uma zona cinza de uns 44% que se diziam “na média”, enquanto os restantes não tinham uma opinião formada sobre si.
Depois dos comentários sobre a descomunal autoestima masculina que explodiram no chat – somos uma equipe quase toda composta por mulheres, temos lugar de fala para opinar sobre a autoestima delirante do homem heterossexual – fiquei pensando nas estruturas que nos levam (socialmente) a esse cenário.
Digo isso porque me lembro de ter lido há alguns anos uma pesquisa semelhante feita com mulheres e, não tão surpreendentemente assim, a proporção era inversa: apenas 4% das respondentes se consideravam bonitas.
A pesquisa é um pouco antiga, sim, e talvez isso tenha mudado. Estamos trabalhando mais em torno de questões como empoderamento, beleza natural, body positivity. Mas arrisco dizer que, mesmo com tanta dedicação da nossa parte, ainda não temos entre as mulheres uma proporção como a dessa pesquisa feita com homens.
E por quê?
A resposta simples não é novidade e já está dada desde 1983, por Marilyn Frye, em seu livro “Políticas da realidade: ensaios sobre teoria feminista” (inclusive mencionado pela Linn da Quebrada durante o BBB22). A autora defende que nossa sociedade, apesar de ser predominantemente heterossexual, é homoafetiva.
Publicidade
Isso significa que, apesar de grande parte dos homens manter relações sexuais exclusivamente com mulheres, quando se trata de afeto não sexualizado, a maioria deles reconhece outros homens como as pessoas que eles admiram, respeitam, adoram (desde o âmbito religioso ao político), honram, imitam e com quem criam vínculos mais profundos. Sendo o homem o modelo e a medida do homem, não surpreende que metade dos entrevistados se afirme “bonito” e quase a mesma quantidade se afirme “na média”. Afinal, sendo eles mesmos a “imagem e semelhança” de si, não há como se sentir desviante, errado e, assim, “feio”. Como Caetano sabiamente diz, “Narciso acha feio o que não é espelho”, ou seja, o feio é o que difere. Não dá para diferir quando se é a norma. O ciclo se fecha aí.
Calma, jovem. Está tudo sob controle.
Na segunda-feira, 09 de maio, Britney Spears postou em seu Instagram três fotografias (ok, com cinco versões cada uma, usando filtros diferentes) em que ela aparece nua, com as mãos cobrindo os seios e um emoji sobre a virilha. Rodando seu feed, é fácil notar que isso não é novo. Aqui e ali já haviam surgido outras fotos em que ela escondia o mínimo possível com as mãos ou um emoji, talvez apenas para a rede social não derrubar a foto.
As fotos geraram comentários bastante desagradáveis, como alguns dizendo que seria melhor que ela continuasse sendo tutelada/controlada pelo pai – de quem ela apenas recentemente se libertou.
Notem: uma mulher de 40 anos deveria ser tutelada pelo pai por postar na internet fotos em que aparece nua com emojis. Controlador demais, não?
À parte a compreensão de que Britney é uma mulher que passou mais de 13 anos sem poder controlar suas próprias redes sociais, o que eu vejo no perfil dela é alguém que se sente bonita, que gosta do próprio corpo do jeito que ele é, não vê problemas em mostrá-lo e, principalmente, que se recusa a colocá-lo – pelo menos naquele espaço – a serviço do olhar masculino.
Sim, é isso que você leu.
Publicidade
As imagens não são tratadas e muitas vezes nem são de boa qualidade. São pixeladas e escuras. Ela é inegavelmente uma mulher nos padrões de beleza, mas o que suas fotos revelam é uma mulher normal. Frequentemente tiradas de um ângulo levemente superior (por uma mesma pessoa?), Britney é clicada quase sempre num único local de sua casa, numa mesma pose, com ou sem roupa. Como se ela não postasse para ninguém e sem nenhum objetivo, as fotos são uma espécie de registro diário de suas roupas, intercalado a mensagens e imagens aparentemente baixadas da internet. É uma conta de Instagram pessoal de uma mulher que está vivendo a própria vida e por vezes deixa os outros espiarem um pouco por pura diversão ou vaidade. Só.
Porém, ainda que nossa sociedade seja homoafetiva (nesse sentido de homens admirarem e respeitarem majoritariamente outros homens em detrimento das mulheres), ela é heterossexual, de modo que o corpo feminino tem sido usado sempre a serviço do olhar (desejante) masculino.
E esse olhar masculino tende a ser muito crítico quanto à beleza feminina, que, sensual ou recatada, deve sempre se conformar ao desejo do outro.
Apenas recentemente o corpo feminino tem deixado de ser utilizado como cartaz para venda dos mais variados produtos, desde carros a bebidas, passando por uma infinidade de outros. Durante séculos, o corpo da mulher foi esquadrinhado, objetificado, mostrado ou escondido conforme o que fosse mais conveniente ao olhar masculino. As mulheres foram separadas e classificadas de acordo com como agiam e pareciam entre “putas” e “santas”, foram psicologicamente manipuladas, questionadas e inferiorizadas.
Assim, da mesma forma que não surpreende que homens se sintam bonitos em uma sociedade que admira e prioriza homens, também não surpreende que tão poucas mulheres tenham se afirmado bonitas na outra pesquisa. Elas, afinal, vivem em uma sociedade heterossexual, em que o valor da mulher geralmente se constrói a partir do prazer e satisfação (inclusive visual) que ela oferece ao outro, ao olhar (idealizador) masculino.
Diferente da confiança que o homem aprende a ter desde cedo – que lhe garante que ele é merecedor, que está no lugar certo, que ele é aceitável socialmente -, a mulher é educada a partir de um não lugar. Ela é o não homem, portanto precisa ou assumir uma imagem que o mundo masculino oferece pronta, ou construir-se do zero, do não modelo. Isso deixa ainda mais evidente o quanto é importante o trabalho de estímulo à autoestima/autoconfiança feminina que tem sido feito nos últimos anos.
E é aí que as fotos para ninguém da Britney são tão revolucionárias, mesmo que talvez ela nem tenha essa intenção. Com elas, a cantora, objetificada por anos como um símbolo sexual, se afirma bonita ao seu próprio olhar – refletido tanto em suas fotografias desajeitadas quanto em sua curadoria delas.
Britney se afirma dona do próprio corpo, do próprio espaço e da própria imagem. Por mais que ela caiba, sim, em diversos padrões de beleza, o fato de ela se comportar – perdão aos fãs – como uma “tia do zap” no Instagram a faz desviar dos padrões e criar um paradigma próprio, sua individualidade.
Publicidade
No sorriso meio bobo para alguém que a fotografa, Britney mostra não o que é construído por uma equipe de produção preparadíssima, mas o que fica fora da cena: roupas das quais ela gosta, bichos de estimação, o corpo do qual ela se orgulha.
Ela é obscena no sentido mais puro da palavra (obsceno = o que fica fora da cena), e talvez seja por esse motivo que haja tantos comentários críticos e, especialmente, desejosos que ela volte a ficar sob o controle do pai. Afinal, como ela ousa mostrar sua nudez sem considerar o olhar masculino? Deus nos proteja de uma sociedade de mulheres que amam a si mesmas, não é mesmo?
Voltando à pesquisa com a qual abri este texto, é importante marcar aqui que não vejo problema algum em os homens se sentirem bonitos. É importante gostar de si mesmo, e isso tem um efeito bastante positivo na forma como uma pessoa age sobre o mundo. Porém, quando temos tantos homens se sentindo confortáveis com a própria imagem enquanto a maioria das mulheres se sente exatamente o contrário disso, a questão deixa de ser individual (saber se o Zé se acha ou não bonito) e passa a ser uma questão de estrutura social que precisa ser pensada como tal.
Até porque, esmiuçando essa pesquisa, é bem capaz que encontremos outras estruturas de dominação emaranhadas nelas, como o racismo, a gordofobia, a homofobia, a xenofobia, etc.
Quem são os respondentes que se afirmam bonitos? A que grupo social eles pertencem? Qual o fenótipo, qual a cor? Quando consideradas, essas respostas podem – mais uma vez sem surpresas – revelar exatamente o que já sabemos sobre nossa sociedade: que ela é desigual e precisa de muito trabalho da nossa parte para se tornar um pouco mais justa. É para isso que precisamos abrir os olhos.
Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três. Escrevo a newsletter Versilibrista.