Estela Lacerda
Sou defensora do cinema nacional e, recentemente, tenho assistido também a séries brasileiras, que têm tomado serviços de streaming como Netflix, Prime Video e Globo Play. Uma dessas séries que acompanhei é ‘Bom dia, Verônica’, original da Netflix, baseada no livro homônimo de Raphael Montes e Ilana Casoy.
Na última quarta-feira (03/08), o serviço de streaming lançou a segunda temporada da série, com seis episódios. Mais do que ser uma produção nacional relevante, ela aborda um tema que é muito importante para mim e para muitas de nós: a violência contra mulher.
Para quem não assistiu a primeira temporada, aqui vai uma breve introdução à série: a escrivã Verônica Torres (Tainá Müller) trabalhava na Delegacia de Homicídio de São Paulo. Depois de um caso específico de suicídio, decidiu investigar casos nos quais mulheres foram violentadas.
A partir disso, Torres descobre uma grande rede de corrupção que toma proporções inimagináveis na segunda temporada. Essa teia corrupta não só entrega diversos esquemas e formas de agir para violentar mulheres, mas também o quanto o Estado, que devia estar ao nosso lado, dando amparo e suporte, pode ser justamente um dos nossos inimigos.
Isso porque, apesar de termos leis muito bem elaboradas na proteção às mulheres no Brasil, quem as coloca ou não em prática são pessoas, e mais do que isso, muitas delas são homens, por vezes os próprios autores de atos violentos.
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Não quero dar muitos spoilers da série, mas para falar dela é preciso comentar algumas cenas das duas temporadas e falar de alguns novos personagens, mesmo que de modo sucinto. Então, alerta spoiler a seguir!
No final da primeira temporada, vemos Torres fazendo justiça com as mãos para vingar toda violência sofrida por Janete (Camila Morgado) e muitas outras mulheres. Todas violentadas pelo Tenente Coronel Brandão (Eduardo Moscovis), também esposo de Janete. O problema é que o Tenente estava envolvido em algo muito maior, inundado em um esquema corrupto. E embora fosse poderoso, era apenas uma das peças de um jogo.
Assassinatos, corrupção na polícia, problemas familiares, tráfico de pessoas e violência contra mulher são alguns dos problemas enfrentados pela protagonista. O que fica mais gritante é a frequência com que cenas de violência, seja sexual ou psicológica, aparecem nessa nova temporada. Ao contrário da primeira, em que a violência doméstica era o foco.
Então, esbarramos no velho dilema da exposição da violência: é necessária? É exagerada? E se é apresentada em excesso, quais são as consequências disso? Cenas de abuso sexual não chegam a ser explícitas em ‘Bom dia, Verônica’, mas qualquer pessoa observadora entende as “sutilezas” apresentadas.
Angela (Klara Castanho) é filha de Matias Carneiro (Reynaldo Gianecchini), um pastor poderoso e corrupto. Vê o pai não só nu e abusando de mulheres, sem ter muita dimensão da crueldade disso aos seus 16 anos, mas também sofre com toques em seu corpo. Engana-se quem pensa que a personagem é apenas a filha mimada, pois se trata de uma peça-chave para desmascarar o sistema corrupto investigado por Verônica Torres.
Em junho deste ano, em meio a muitas polêmicas, Klara Castanho revelou que foi estuprada. Além disso, o personagem Matias lembra a figura de João de Deus, que abusou de inúmeras mulheres. Tendo consciência disso, é inevitável pensar em o quanto a série pode ou não despertar gatilhos em vítimas de violência sexual.
Psicólogas e psiquiatras há muito falam desse assunto e pontuam que, sim, cenas de abuso sexual em filmes, séries e mesmo em livros podem acionar gatilhos. Isso pode acontecer porque memórias e lembranças do trauma vivenciado podem vir à tona, desencadeando emoções que variam de pessoa para pessoa.
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É possível que a vítima de abuso sexual coloque-se no lugar de quem está sendo abusada numa cena, episódio ou capítulo. E justamente por isso que é extremamente importante ter acompanhamento psicológico para o enfrentamento do trauma. Somente assim, o evento traumático poderá um dia ser encarado de modo mais leve.
Felizmente é cada vez mais comum que a violência contra mulher seja abordada nas mais diversas formas artísticas. Ora de modo mais ameno, ora de modo mais explícito. Mas como saber se vou consumir obras que podem acionar gatilhos, a partir de um abuso que vivi? Uma das possibilidades é atentar-se para os trigger warnings, mais conhecidos como “alerta gatilho” no Brasil.
Pesquisas de Harvard indicaram que nem sempre o alerta gatilho é eficaz, isso porque depende muito do estado de saúde mental de quem enfrentou ou enfrenta um evento traumático no momento. No entanto, ainda assim, pode ser positivo estar atenta às classificações indicativas, temas abordados, avisos sobre a presença da violência, se há conteúdo sexual ou mesmo abuso de drogas.
A partir disso, você estará consciente do que poderá assistir ou mesmo ler, passando a refletir se está disposta ou não, se é hora para lidar com essas questões. E se não for o momento para você, está tudo bem, respeite o seu tempo.
Estou ansiosa para a terceira temporada de ‘Bom dia, Verônica’ e espero que ela discuta a violência contra mulher de modo empático e cuidadoso. Falar sobre esse tema é emergencial!
Fez Letras, mas se encontrou na área de Comunicação. Mediadora do clube de leitura #LeiaMulheres e autora do livro de poemas 'O rio seco que vive em mim'. Gosta de planta, de bicho e de gente, mas mais ainda de histórias.