COLUNA

Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles: réquiem para uma amizade sincera

Thays Pretti

Uma pequena homenagem às escritoras que me ensinaram não só o amor pela literatura, mas também a formar redes de apoio entre minhas iguais

Tem um mês e meio que morreu Lygia Fagundes Telles, a última escritora de uma geração de grandes nomes da literatura brasileira. De lá pra cá foram publicadas muitas homenagens as mais variadas. Eu poderia ter engrossado esse caldo, mas sou a pessoa que perde o timing. Daquele tipo de gente que só abre a boca depois que o sentimento assenta no fundo do copo e voltamos a ver a água límpida e transparente, sabe como? Pois é, eu sou assim.

Mas também teve outra coisa: não escrevi nada porque fiquei inquieta com a descoberta de que Lygia mentia a idade em cinco anos para baixo. Exatamente como – repare – Clarice Lispector.

Ok, não é tão exato assim. Na verdade, Clarice mentiu a idade de formas diferentes no decorrer de sua vida e dependendo do interlocutor, subtraindo às vezes dois ou três, às vezes cinco anos. Mas a ideia de que as duas escritoras poderiam ter combinado isso tirou meu sono por várias noites. Fiquei imaginando Clarice e Lygia em um café, entre risinhos, acertando os detalhes da simpática mentira como quem prega uma peça. As “vítimas” seríamos nós, todos nós que estamos do lado de fora desse particular universo que era a amizade entre elas.

As duas tinham aproximadamente a mesma idade e despontaram como escritoras mais ou menos juntas, uma no Rio e outra em São Paulo. Ambas cursaram Direito, ainda que apenas Lygia tenha atuado na área, como Procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo. E ambas eram escritoras atuando em um espaço muito masculino, em que mulheres com frequência eram tratadas com paternalismo. Digo, quando pacatas. Quando eram ousadas, como a também contemporânea e amiga Hilda Hilst, o tratamento ia para o campo do desprezo e da tentativa de anulação.

“Lygia, você tem só um defeito, você ri muito. Faça como eu, não ria – os homens não levam mulheres a sério quando riem”. Segundo Lygia, esse teria sido um dos conselhos de Clarice para ela. Apesar de muito discreta, o desconforto com a desigualdade entre homens e mulheres na cena literária era uma grande preocupação de Clarice. Tanto que, na abertura de uma entrevista que fez com a amiga, enfatizou que “há o hábito de se escrever que ela [Lygia] é uma das melhores contistas do Brasil. Mas do jeitinho como escrevem, parece que é só entre as mulheres escritoras que ela é boa. Erro. Lygia é também entre os homens escritores um dos escritores maiores”.

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E é. Lygia foi uma das grandes entre os escritores da literatura brasileira, assim como Clarice Lispector. Duas mulheres inteligentes, belíssimas, despojadas e alegres, ainda que, no caso de Clarice, sempre séria nas fotografias. Mesmo assim, duas mulheres alegres – e, talvez, justamente por terem o suporte e a amizade uma da outra no enfrentamento dos desafios que a época impunha.

Um vestido branco e a testa desanuviada

Veja, quando digo que Clarice Lispector era uma mulher alegre, não falo isso sem embasamento. São justamente os relatos de Lygia sobre a amizade das duas que me dão a impressão que ficou sendo a minha versão pessoal de Clarice, uma versão amorosa e com uma seriedade calculada, feita apenas de precauções.

As escritoras conversavam quase todos os dias e chegaram a fazer duas viagens juntas, entre elas uma icônica viagem para a Colômbia, onde ambas falariam sobre seus livros em um congresso de escritores.

Essa aventura foi repetidamente contada por Lygia em entrevistas – talvez para manter Clarice viva, mesmo após a morte da amiga. Ela contava, por exemplo, que tinha medo de aviões e, ao passarem por uma turbulência, Clarice, sentada ao seu lado, teria segurado seu braço e dito: “Lyginha, a cartomante me disse que eu não morrerei de nenhum desastre. Morrerei na cama. Fique calma”.

Ela contava também que, depois de ambas falarem sobre seus livros no congresso, teriam ido para um bar enquanto o evento ainda estava acontecendo. Lá, se daria o seguinte diálogo:

Clarice: “Eles estão lá tentando falar sobre a criação literária. Lygia, você consegue explicar a criação literária?”
Lygia: “Não, não consigo.”
Clarice: “Nem eu. Então vamos beber.”

E beberam o mistério que é escrever, conversando sobre homens, mulheres, o ofício da escrita. Tenho para mim que essa conversa entre elas deve ter rendido muito mais material para textos futuros do que mil palestras e mil congressos, porque estavam inteiras ali, completas, acesas, libertas – duas mulheres sendo as escritoras não subservientes que eram em um bar na Colômbia.

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Ao fim da viagem, desembarcando no Brasil, Clarice ainda teria dito: “Lygia, não se esqueça: compre um vestido branco e mantenha a testa desanuviada”.

Eu acredito muito na amizade entre Lygia e Clarice. Ao mesmo tempo, não consigo não pensar que também era uma forma de resguardá-las do cenário difícil que precisaram enfrentar, uma espécie de sororidade literária. Não fosse isso, o que justificaria que essa mulher alegre e espontânea que foi Clarice mantivesse, em quase todos os registros fotográficos que restaram dela, aquela expressão fechada e distante?

O mais importante aqui, porém, é o quanto uma rede de apoio, ainda que pequena como a delas, é fundamental quando nós, mulheres, nos enveredamos não só pelos caminhos da arte – e da literatura, mais especificamente -, como por todos os caminhos que ainda sigam sendo predominantemente masculinos.

Ainda hoje há gêneros literários – como a fantasia e a ficção científica – nos quais escritoras prefiram usar apenas suas iniciais em vez de seus nomes, para evitar preconceitos por parte dos leitores.

Além disso, numa época em que escritores têm cada vez mais visibilidade enquanto “figuras públicas” nas redes sociais, o corpo e o rosto da mulher escritora, antes mais protegidos por trás de suas palavras, passam a ser cada vez mais objetos de exposição e, algumas vezes, até uma espécie de “propaganda” de sua obra, ainda que não verse sobre corpos.

Para afrontar tudo isso, eu acredito que nada é mais potente do que amizades sinceras entre mulheres. Aliás, mais do que isso, amizades “ativas”. Amizades que se movem proativamente na direção de defender uma amiga quando necessário (amizades “reativas”), mas que também ajudam, divulgam, leem, consomem o trabalho das amigas. Sugerem onde melhorar e mostram alternativas por onde seguir. Em suma, amizades que são presentes.

Agora, uma pequena confissão. Durante muito tempo, não tive um vestido branco, porque, para mim, isso lembrava casamento ou Ano Novo, duas ocasiões específicas demais para eu ter um vestido assim em casa. Mas, quando ouvi pela primeira vez Lygia falando sobre o conselho de Clarice, comprei um vestido branco. Desde então, ele é como um abraço de uma amiga distante. Talvez duas amigas, essas, que só conheço por seus livros, mas que me inspiram tanto.

Fora isso, escrevo. É meu jeito de desanuviar a testa, um pouquinho por vez. Minha torcida é que, aí do outro lado, este texto te ajude a desanuviar também.

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* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três. Escrevo a newsletter Versilibrista.