Dicas de Mulher
Uma das maiores dificuldades de ter sido obesa era comprar roupas que me serviam e agradavam. No meu caso, as pernas e os braços muito grossos nunca estiveram em harmonia com a largura da cintura e das costas. Na minha juventude, as roupas em tamanhos maiores seguiam modelos comumente usados por pessoas bem mais velhas. Não eram joviais. Portanto, sempre foi complicado o meu acesso a peças produzidas pela indústria da moda, muito mais interessada em obter lucros do que em vestir corpos diversos.
Essa dificuldade me levou à decisão de aprender a cortar e costurar roupas que eu gostasse e que me servissem. Nunca fiz cursos de corte e costura. Minha mãe me ensinou o básico e, depois, minha irmã caçula, que sempre teve fábrica de confecção, colaborou com o aprimoramento da técnica, o suficiente para eu me arriscar na arte de confeccionar minhas peças. Mas devo confessar que não sou muito boa nos acabamentos. Sou apenas a “intrometida” do ramo da confecção.
A costura, para mim, é uma escolha. Historicamente, porém, ela tem sido uma obrigação para as mulheres, seja como “prenda doméstica”, exigida para a manutenção da família patriarcal, seja como atividade laboral exercida nas fábricas.
Desde o início da sociedade patriarcal, a costura sempre foi uma prática imposta ao mundo feminino. Fazia parte das “prendas domésticas” exigidas para o casamento, único destino reservado às mulheres. Assim como outros saberes, ela era compartilhada de geração em geração, por meio da oralidade e da observação. A boa dona de casa, além de cuidar da casa, dos filhos, dos idosos e dos adoecidos deveria, ainda, costurar as roupas da família.
Minha avó contava que, uma vez ao ano, ia à cidade e comprava uma ou duas peças fechadas de tecidos. Como cada peça tinha em média 50 metros, ela confeccionava para toda a família roupas com modelos diferentes, mas com tecido igual. Nas antigas fotos, a família aparecia uniformizada.
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Minha mãe, embora já morasse na cidade, replicava esse costume. Eu, e minhas três irmãs temos várias fotos com roupas iguais. Para minha avó e para minha mãe, a costura era uma habilidade exigida culturalmente para a preservação do casamento, no âmbito da família tradicional.
Já no período industrial, a costura foi mecanizada e surgiram as fábricas de confecções, nas quais as mulheres, majoritariamente, foram exploradas, sujeitas a jornadas extenuantes, condições insalubres e baixos salários.
Mesmo na atualidade volta e meia surge algum escândalo em relação a grandes marcas do ramo da confecção que seguem mantendo trabalhadoras em condições análogas à escravidão. Nesse cenário da moda industrializada, a costura também sempre foi uma imposição social para a sobrevivência das mulheres.
Ainda assim, é possível resistir à opressão. Em 1917, cerca de 400 operários – em sua maioria mulheres – de uma fábrica têxtil, em São Paulo, paralisaram suas atividades, realizando o primeiro movimento grevista no Brasil. Reivindicavam, entre outras coisas, o aumento de salários e redução das jornadas de trabalho.
Outro exemplo de resistência, mostrando que essa mesma costura que explora e escraviza pode ajudar a libertar, é o relatado por Lucy Adlington no livro ‘As costureiras de Auschwitz’ (2021). A autora conta a história de um ateliê de costura que funcionou no interior do campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau. As mulheres aprisionadas desenhavam, cortavam e costuravam roupas para as esposas de oficiais nazistas. Assim, muitas vezes, elas tinham informações privilegiadas e ajudavam na resistência. Não foram exterminadas porque costuravam.
Na segunda metade do século XX, as mulheres iniciaram uma trajetória de empoderamento em todos os âmbitos de suas vidas. Há uma tendência crescente de compartilhamento das tarefas domésticas e do cuidado com os filhos. No campo profissional, embora as mulheres ainda recebam salários mais baixos do que os homens e não sejam tão reconhecidas, elas estão cada vez mais ocupando espaços e ditando caminhos. Nesse contexto, a máquina de costura pode representar na vida de muitas mulheres a independência financeira e a libertação das relações ainda machistas e desiguais.
Na minha juventude, durante os anos 1970 e 1980, as mulheres desejavam se separar de tudo o que remetesse à vida doméstica, ao que era considerado “feminino” e compulsório. A costura fazia parte desse cenário de imposições. Hoje, diferentemente, a retomada de certas práticas antes associadas à obrigatoriedade ocorre colada a sentimentos mais positivos. Várias atividades vem sendo ressignificadas – inclusive trabalhos manuais, como a costura, o crochê e o tricô, que são valorizados como atividades criativas, artísticas e até terapêuticas.
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Os jovens têm se interessado cada vez mais pela costura. Eles questionam a origem do que vestem, a destinação dos resíduos, a sustentabilidade e o consumismo desenfreado. Sabem que a produção de têxteis emite toneladas de gases de efeito estufa anualmente e que milhões de árvores são derrubadas para a fabricação de certos tecidos. Até porque, de fato, o desrespeito aos direitos humanos, a desigualdade de gênero e a degradação ambiental são grandes problemas do setor do vestuário.
A preocupação com o meio ambiente e os altos preços das roupas novas nas lojas têm estimulado a prática de costurar as próprias roupas ou a compra de roupas já usadas. Os brechós se tornaram uma tendência mundial.
Além de tudo isso, é cada vez mais nítido o quanto nossas roupas ajudam a construir nossa identidade. Costurar as minhas me ajudou a aceitar meu corpo e definir meu estilo. Tenho prazer sensorial e estético nessa atividade. Sinto-me empoderada por fazer roupas do tipo que gosto, para o meu corpo, do jeito que ele é.
Sem contar que, ao mesmo tempo que costuro, eu entrelaço pensamentos e sentimentos, alinhavo e compreendo a minha história. Ao costurar pedaços de tecidos e compor uma peça de roupa, paralelamente, costuro minha identidade. Como essa atividade é ancestral, ao exercitá-la eu movo memórias, eu “falo” e não me desmancho. Se erro, descosturo, transformo e recomeço.
Para nós, mulheres, costurar por escolha, e não por imposição, talvez possa ser uma forma de ressignificar muitos dos saberes que foram construídos no âmbito da histórica opressão da sociedade patriarcal. Nesses saberes, temos a possibilidade de reconhecer aprendizagens importantes para a construção de uma vida mais feliz e independente. Os tecidos, as linhas, os moldes, a costura, os arremates podem ajudar a compor uma identidade autônoma para que as mulheres tracem novos planos.
Nesse sentido, agradeço imensamente à minha mãe e à minha irmã caçula por terem me ensinado o que sei sobre corte e costura. Elas fizeram parte da construção da minha capacidade de costurar minhas roupas.
Se depois de tudo isso eu puder deixar ainda um conselho, peço: quando se trata de moda, vista a roupa, não deixe que ela vista você!
Doutora em História, mestra em Educação e graduada em Pedagogia. Professora aposentada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mantém-se na luta cotidiana pela educação de qualidade, democrática e para todos.