Dicas de Mulher
Nunca usei um ferro à brasa para passar roupa – esses que hoje estão nos museus ou decoram algumas casas. Já sou da época do ferro elétrico e minha mãe conhecia bem essa ferramenta doméstica. E, mesmo tendo experimentado o peso, o calor e as faíscas do ferro à brasa, ela ainda era defensora da prática de passar roupa. Dizia que tínhamos que sair “na estica”, o que significava vestir uma roupa limpa e passada. Achava que a roupa amassada dava a impressão de desleixo.
A invenção do ferro elétrico não alterou esse estereótipo no campo da moda. Culturalmente, a roupa passada ainda é um padrão. Contudo, tem crescido o número de pessoas que defendem o uso de roupas que não foram passadas. Inclusive, certos cuidados, tomados desde a hora de lavar, secar e guardar, podem reduzir o amassado, sem que seja necessário passar as roupas. A internet está cheia de dicas e vale conferir.
Muitas pessoas que proclamam que é desnecessário passar a roupa têm apresentado seus argumentos na internet. Campanhas viralizam, com slogans variados: “orgulhosos de nossas roupas amassadas”, “abaixo o ferro de passar roupa”, “está na hora de aceitarmos a roupa amassada”. Geralmente, são os jovens que aderem a essa tendência. Porém, há exceções. Eu, por exemplo, tenho 60 anos e não passo roupa há mais de uma década. Embora eu seja bem preguiçosa, não é por este motivo que excluí essa atividade da vida doméstica. Tenho inúmeras razões e muitas delas também são defendidas nas campanhas contrárias à prática de passar a roupa.
Nós, que defendemos a aposentadoria do ferro de passar, estamos muito preocupadas com o meio ambiente. Deixar de passar roupa diminui o gasto de energia elétrica e a produção de gases de efeito estufa que aumentam o aquecimento global e causam instabilidade climática. Além disso, como o calor do ferro desgasta os tecidos, ao não passar a roupa, elas duram mais e, consequentemente, compramos menos roupas. Isso também colabora com o equilíbrio ambiental. Ora, se gastamos menos energia elétrica e deixamos de comprar tanta roupa nova, o dinheiro que sobra é uma economia muito bem vinda, numa época de carestia, como a que vivemos hoje. E mais, o tempo que demoramos para passar a roupa pode ser usado para outras atividades, bem mais prazerosas. Ainda há a diminuição dos acidentes domésticos, como as queimaduras geradas pelo calor do ferro.
Mas há outra razão, muito importante, para defendermos a abolição do ferro de passar: a luta contra a desigualdade de gênero.
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Durante a minha infância, nos anos de 1960, ganhei algumas bonecas e vários kits de cozinha de brinquedo, incluindo fogão, geladeira, utensílios e a tábua e o ferro de passar roupa. Esses brinquedos, nada inocentes, nos preparavam para a maternidade e para as tarefas domésticas destinadas, naquela época, predominantemente, às mulheres. Nunca vi um menino ganhar um ferrinho de brinquedo para passar roupa. Os estereótipos de gênero, definidos muito cedo, anunciavam nosso futuro como donas de casa. Algumas mulheres conseguiam escapar desse destino. No meu caso, o acesso ao ensino superior, à arte e à literatura foram imprescindíveis para questionar esses padrões e criar condições para que eu pudesse me livrar dessa sina, ainda que parcialmente.
Apesar das exceções, de fato, o que tem predominado ainda é o sexismo, fundado na desigualdade de gênero. Ou seja, o estabelecimento de padrões e comportamentos que devem ser seguidos conforme o gênero da pessoa. Passar roupa tem sido uma tarefa atribuída, predominante, às mulheres. Elas já tiveram muitas conquistas, mas a opressão ainda permanece. Abolir o ferro elétrico pode colaborar com a luta contra a desigualdade de gênero e o sexismo. Além de mudanças políticas, educacionais e culturais, necessárias para acabar com essa desigualdade, algumas atitudes básicas podem aliviar a carga de trabalho das mulheres. Deixar de passar roupa é uma delas. É necessário que as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos sejam compartilhados com todos os adultos envolvidos nessa relação.
Pode ser que nem todos aceitem as roupas não passadas. Porém, quem sabe as campanhas que ocupam a internet possam ajudar na conscientização sobre a necessidade urgente de preservação do meio ambiente e sobre a imprescindível luta contra o sexismo. Hoje, ferros à brasa já decoram algumas casas ou estão em museus. Não vejo a hora dos elétricos ocuparem os mesmos lugares.
Para concluir essa coluna, quero contar uma história que ocorreu comigo há 18 anos. Na época, eu tive câncer no estômago e fiz uma cirurgia para a retirada desse órgão, que estava todo contaminado. Emagreci, rapidamente, 45 kg e tive uma drástica queda de imunidade. Como eu era muito obesa, a pele do meu corpo soltou-se e ficou flácida e muito enrugada. Certo dia, saí do banheiro nua e meu filho, que então tinha 6 anos, me olhou meio assustado e, apontando para meu corpo, perguntou:
– Mãe, você vai sair assim?
Eu, achando que ele estava se referindo à minha nudez, disse:
– Claro que não filho, vou me vestir.
Ele, novamente, apontando para meu corpo, disse:
– Não mãe, tô perguntando se você vai sair assim, desse jeito?
Eu repeti a resposta sem entender muito bem o que ele estava perguntando. Daí, meio sem jeito, meu filho falou:
– Mãe, você não está entendendo, tô perguntando se você vai sair assim, amassadinha?
Abracei-o e ri muito da sua inocência. Como se fosse possível passar a ferro todas as rugas e marcas que o câncer me deixara.
Essa história ilustra o modo como quero concluir essa coluna. Parece que alisar rugas transformou-se numa moda. Crescem os procedimentos estéticos para tirar as rugas dos corpos, pois todos querem parecer lisos e perfeitos. No caso das roupas, de certa maneira, as rugas são as cicatrizes da sua existência. Ao vestirmos uma roupa e nos movimentarmos, ela amassa. Essa é a natureza das roupas: serem usadas e amassadas.
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Ao submetermos cada marca de nossa existência – as registradas em nossos corpos ou nas nossas roupas – aos cirurgiões plásticos ou ao calor escaldante de um ferro elétrico, não estaríamos reféns de estereótipos? Estamos rejeitando a nossa natureza e a dos tecidos?
Os amassados dos nossos corpos ou das nossas roupas, resultam das marcas do tempo, das memórias e de nossos movimentos. Por que apagar tudo isso? A não ser que estejamos nos desumanizando. Bem, daí terei que escrever outra coluna.
Doutora em História, mestra em Educação e graduada em Pedagogia. Professora aposentada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mantém-se na luta cotidiana pela educação de qualidade, democrática e para todos.