Estela Lacerda
Diferentemente da maioria das vezes, começo dizendo claramente a que veio a coluna de hoje. Este texto é sobre fazer as pazes com faltas maternas e abraçar a realidade que nos atravessa enquanto mulheres, sem deixar escolha. Mas, antes de qualquer coisa, ressalto que falo aqui como filha, a partir da minha percepção enquanto pessoa nesse lugar.
Esses dias tive uma conversa com a minha mãe sobre o que poderia ter faltado na minha criação e na da minha irmã, quatro anos mais nova que eu. Para mim, nada faltou, eu tive o essencial. Se houvesse mais grana para a gente poder viajar em família, não seria nada mal, mas essa, sem dúvida, não era uma falta: era apenas um desejo.
A conversa foi em torno do fato de que minha mãe sempre trabalhou muito. Por isso, ela foi pouco presente, sem cuidar tanto de mim e da minha irmã. Realmente era assim. Tenho poucas lembranças da minha mãe em casa por mais tempo. Mesmo durante suas férias de trabalho, arrumava “bicos”, que hoje chamamos simpaticamente de “freelas”.
Não é que minha mãe passasse horas em algum escritório, ou travada no trânsito dentro do seu carro. Durante muito tempo, ela acordava por volta das 04h, pegava um ou dois ônibus e ia trabalhar em frigoríficos na região onde morávamos, nos quais passou muito tempo de sua vida, sob temperaturas monstruosas e fazendo horas extras.
Dona Suely voltava para casa com o finzinho do dia, já exausta, sem o sol lá fora. Ainda ia fazer janta, lavar roupa, deixar a casa em ordem, dar uma olhada nas tarefas escolares das filhas. Até que dormia para começar tudo de novo no dia seguinte.
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Foi assim. Na minha infância eu via minha mãe por poucas horas, à noite. Ao longo do dia, eu estava na escola meio período e no outro período eu cuidava da minha irmã mais nova. Só tivemos babás até eu fazer 10 anos, depois disso eu estava “grandinha para me virar” – e era uma economia enorme de dinheiro.
Conto tudo isso sem nenhum rancor, sem nenhuma mágoa e muito orgulhosa da mãe que tenho. Se ela não estava muito presente durante a semana, meus fins de semana eram os melhores com ela. Do café da manhã juntas ao jantar.
Lembro de momentos muito singelos, com ela me ensinando a fazer abóbora madura igual ao meu avô, filho de uma mulher indígena, fazia. E como identificar se as plantas eram comestíveis, seguindo os ensinamentos dele também. Mais especial ainda era quando íamos à pizzaria do bairro ou à sua lanchonete favorita.
Sentia falta da minha mãe? É claro! Queria tê-la por perto mais tempo, mas, mesmo ainda sendo uma garota imatura na época, algo dentro de mim sabia que aquela falta não era proposital, era uma falta necessária.
Crescer vendo minha mãe se desdobrando para dar o melhor para mim e para minha irmã dentro das suas possibilidades financeiras me fez uma pessoa muito responsável e madura desde cedo.
Eu sabia que a vida não era um mar de rosas, mas que a gente podia plantar a própria roseira. Foi assim que cresci, trabalhei desde muito cedo, em açougue, vendendo chip da Claro, em escolas, até chegar aqui, onde você me lê.
Na conversa com a minha mãe, que é uma pessoa de poucas palavras, eu disse que sua ausência foi a única maneira de dar um futuro melhor para mim. Além disso, destaquei que eu a entendo completamente e agradeço por não deixar faltar o que mais é importante para mim: bom caráter, empatia, respeito.
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Conto essa fatia da minha vida, extremamente pessoal, para refletirmos sobre o quanto nossas mães renunciam a tempo, bens materiais e sonhos para dar o melhor para nós. Muitas vezes, esse ato não é nem um plano, é a única opção que a realidade permite, determinações do destino.
Entender todo esse contexto, que é social, mas ao mesmo tempo completamente político, é fazer as pazes com nossas mães, com nossa infância, com nosso passado e até com nosso futuro, caso desejemos ser mães também.
Você já parou para pensar em tudo que sua mãe abriu mão para te dar o melhor? Já se perguntou como ela se sente em relação às suas próprias ausências como figura materna? É um exercício não só interessante, mas de fortalecimento desse vínculo entre mãe e filha.
Ou, indo mais fundo: você reparou que a sociedade e a política brasileira não são pensadas para dar suporte às mães pobres? O que poderia ser feito? O que nós, enquanto cidadãos, podemos fazer para mudar essa realidade?
Tem uma música do Emicida chamada ‘A ordem natural das coisas’, que me lembra muito o que disse até aqui. Nela, é contado que Dona Maria, uma merendeira, pega o ônibus bem cedinho e em certa altura do caminho desce, mas só depois disso é que o sol nasce, o astro rei só vem depois.
Às vezes essa é a ordem natural das coisas para muitas mulheres, principalmente pobres, pretas, periféricas. Que eu e você saibamos nos entender com as faltas da nossa criação, possamos deixar o coração de nossa mãe em paz e aproveitar o novo amanhecer que só foi possível graças a ela.
Fez Letras, mas se encontrou na área de Comunicação. Mediadora do clube de leitura #LeiaMulheres e autora do livro de poemas 'O rio seco que vive em mim'. Gosta de planta, de bicho e de gente, mas mais ainda de histórias.