COLUNA

Desromantizar para quê?

Dicas de Mulher

Por que é preciso desromantizar a maternidade?

Uma casa ensolarada, crianças felizes, um abraço do marido ao entardecer, uma mesa farta e após o sono das crianças às oito em ponto, um filminho embaixo das cobertas em uma atmosfera repleta de amor e de tranquilidade. Inserida neste contexto uma mãe amorosa e acolhedora, capaz de dar conta de todas as adversidades sem manifestar suas dores. Sustentando um sorriso alegre, disponível para aprender e para ensinar sobre todas as coisas. Sempre desejosa de fazer o seu melhor, de entregar tudo de si pela felicidade dos filhos.

Após o parto, a tentativa de materialização deste ideal se inicia em meio a muitas mudanças hormonais e descobertas. A organização das horas começa a não fazer mais tanto sentido, e se antes uma refeição durava de 20 a 30 minutos, após o parto o almoço de uma mãe pode ser só um copo de suco engolido entre uma e outra troca de fralda. Enquanto a janta pode se transformar em uma tarefa interminável entre mamadas, cólicas e trocas de lençóis. Dormir às oito em ponto pode não acontecer antes dos sete (anos) e a tranquilidade pode ser apenas mais uma função enumerada. O descanso para as mães pode se tornar cada vez mais distante e complicado, até acabar se tornando intangível. A imagem da casa ensolarada, assim, se completa com a louça acumulada na pia, com os brinquedos espalhados, com a roupa para lavar, com a comida por fazer, com a criança para cuidar e sem momentos garantidos de autocuidado e de lazer.

O desejo pela maternidade em nada se assemelha ao desejo pelo cansaço e pela solidão. A sobrecarga materna não é uma escolha. O sonho da maternidade não é o do padecimento no paraíso, mas o da possibilidade de vivência do “amor maior que tudo”, do amor que dizem ser capaz de superar qualquer barreira. A história sobre o amor materno é bastante romanceada, nela o sofrimento é valioso, as noites sem dormir serão recompensadas com sorrisos, todas as fases difíceis irão passar deixando saudade e o trabalho doméstico será pago com o reconhecimento que a mãe receberá dos filhos.

Mas porque não retratar a maternidade como ela é na realidade, sem excluir ou mascarar na narrativa as dores, os medos e os obstáculos? Porque, ainda, há tanto medo de “acabar com o romance”? Para muitas pessoas desromantizar a maternidade significaria destruir a essência do que é ser mãe, seria como derrubar o castelo do conto de fadas no qual tanto se investe. Quando a realidade, inevitavelmente, se apresenta às mães, o discurso romantizado cria atritos entre o sonho (o desejo) e a experiência. Enquanto muitas mães se esforçam para sustentar a aparência de que o romance é possível, a lógica que se estabelece é a da frustração: “Como tantas mães conseguem e eu não?”, “Como pode para mim ser tão difícil algo que estas outras mães aparentam realizar com tanta facilidade?”. Um movimento que acontece bastante é a tentativa de alcançar o ideal romantizado, liderada pelo medo de se tornar “menos mãe”, ou seja, o medo de não ser suficientemente competente para dar conta de tudo sozinha e de maneira impecável.

Esse apagamento da realidade da rotina, dos sentimentos, do cansaço, da sobrecarga materna é também uma forma de apagamento dos recortes raciais, de classe e de gênero. Quando se propaga a ideia de que boas mães são capazes de dar conta de tudo, propõe-se que se ignore as diferenças de acesso, a escassez de políticas públicas voltadas às mães e crianças, a falta de rede de apoio, o mercado de trabalho despreparado para atender profissionais que são mães, a desigualdade das responsabilidades de cuidado atribuídas às mães e aos pais. Desromantizar não é sobre tirar o brilho da maternidade, mas sobre não atribuir a ela uma ideia glamourizada que não se sustenta nem mesmo entre as mães mais privilegiadas.

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Mesmo a mãe que conta com um parceiro funcional, com uma rede de apoio garantida, que não precisa se preocupar com o pagamento dos boletos, que conseguiu manter a carreira profissional ativa, para esta mãe, a desromantização da maternidade é importante também, porque mesmo sobre ela recaem muitos pesos. Se o que estamos buscando, enquanto mães, é um futuro melhor para os nossos filhos precisamos começar a trilhar este caminho a partir do que é real para que os resultados possam ser, também, reais. A desromantização pode não ser tão atrativa quanto a romantização, porque a desromantização não promete às mães nenhum título por esforço e adoecimento, apenas a possibilidade de um caminho para que as mães das próximas gerações possam maternar em paz.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Carolina Damião é atriz, escritora, produtora e criadora de conteúdo sobre o direito das mães de viverem a vida para além da maternidade. Gosta de pintar murais e de dançar. É mãe-solo e deseja ser feliz no paraíso. Em breve no teatro com o monólogo "Não me chame de mãe".