Dicas de Mulher
Recentemente, encontrei com uma amiga que acabou de voltar dos EUA. Ao mostrar fotos do passeio, apontou a Estátua da Liberdade, que fica numa ilha em Manhattan, em Nova Iorque, e contou uma curiosa história.
A estátua, inaugurada em 1886, foi um presente da França ao povo estadunidense para comemorar o centenário da Declaração da Independência dos EUA. Ela é considerada um símbolo da liberdade, da justiça e da democracia. Oficialmente, então, a designação “Liberdade” é uma referência a um modelo de organização política, se conectando ao conceito de “Independência”. Mas o grandioso monumento desperta na população diversas outras narrativas, muitas delas sem nenhuma base na realidade. Minha amiga contou que há, por exemplo, quem diga que a Estátua da Liberdade representa uma mulher “solteirona” que “ficou para titia”.
Supondo que essa história fosse verdadeira (obviamente não é), penso que se manter solteira por 136 anos numa sociedade que desqualifica essa condição e ainda ser chamada de Estátua da Liberdade seria, no mínimo, bastante elogioso.
Obviamente dei risada dessa história estapafúrdia. Mas fazia muito tempo que eu não escutava a expressão “ela ficou para titia” e ela grudou no meu cérebro. Como remete a uma condição atribuída somente às mulheres, fiquei intrigada e procurei uma expressão similar na internet, que também fosse pejorativa, para ser aplicada aos homens. Nada.
A legislação brasileira define como solteira a mulher que nunca se casou. A referência é o que lhe falta – um marido – e não a liberdade da qual usufrui. “Solteirona”, no aumentativo, é a mulher que não se casou e já está na faixa etária entre 35 e 40 anos, idade na qual a capacidade biológica de ser mãe começa a entrar em declínio. Quando a mulher entra solteira nessa faixa etária, é comum que ela seja alvo de perguntas como “não tem namorado?”, “não vai se casar?”, “quem vai cuidar de você na velhice?”. Ou, ainda, de sentenças como “vai ficar para titia”, “está encalhada”, “é uma solteirona fracassada”…
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De fato, a solteirice é uma noção construída socialmente. Na nossa sociedade, cis e heteronormativa, o casamento é praticamente considerado um preceito, que gera vários lugares comuns. Por exemplo, o de que mulheres solteiras precisam sempre explicar sua condição. Às casadas, não perguntam por que se casaram. Mas as solteiras precisam explicar por que não contraíram matrimônio ou por que foram “incapazes de segurar um homem”.
Mesmo que tenham ocorrido muitas mudanças e que já haja inúmeros outros arranjos familiares, o modelo tradicional, baseado na estrutura patriarcal, até o momento não foi superado. O familismo tradicional é a cultura predominante. Nesse contexto, como a solteirice pode revelar a crise do modelo de família tradicional, é melhor, então, explicá-la como um fracasso da mulher, não como uma construção social.
É claro que o estigma da solteirice não atinge a todos da mesma maneira. Quando os homens permanecem solteiros depois dos 35 anos, é porque “escolheram essa condição”, porque “decidiram evitar compromissos” e “aproveitar a vida”. Enquanto a mulher sente vergonha de estar solteira depois de certa idade, o homem tem orgulho da mesma condição.
Nesse sentido, é curioso considerar que psicólogos têm detectado, predominantemente entre as mulheres, uma condição chamada “anuptofobia”, que é a fobia/medo irracional de ficar solteiro.
A predominância do modelo de família nuclear tradicional, caracterizado pelo
casamento heterossexual indissolúvel, gera preconceitos em relação às pessoas que não estabelecem essa configuração familiar. E, repito, as mulheres são muito mais afetadas do que os homens, como se ser solteira fosse um desvio de padrões estabelecidos socialmente.
O fenômeno “ficar para titia” – mulheres demorando mais para se casar ou optando por não se casar – é mundial. Porém, em alguns países a percepção da “solteirice” é muito mais negativa. Na China, por exemplo, as mulheres que não se casaram ou não foram mães antes dos 35 anos são chamadas de “sobras”. Pesado, né?
Circulam no país propagandas explicitando o drama das pressões familiares e o sofrimento das solteiras, chamadas de “sheng nu”, mulheres que não se casaram antes dos 27 anos e, por isso, sobraram. Há, inclusive, lugares reservados para os pais colocarem cartazes com listas dos pontos positivos de suas filhas, na expectativa de encontrar um parceiro para elas.
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Isso ocorre, por exemplo, num parque em Xangai, onde, todos os fins de semana, centenas de pais levam esse tipo de cartazes.
Assim como no restante do mundo, no Brasil também tem aumentado muito o número de solteiros: quase metade da população do país se declara solteira. Alguns fatores contribuem para isso, como a ascensão das mulheres no mercado de trabalho, a diminuição da dependência financeira e mais autonomia individual. Acompanhando esse movimento, cresce também o número de residências com um único morador.
No entanto, apesar desses grandes números, o preconceito com mulheres solteiras segue muito forte por aqui. Vários termos pejorativos são usados para denominar a mulher que já ultrapassou a idade considerada “ideal” para casar: encalhada, fracassada e, entre outros, “ficou para titia”. De qualquer modo, são termos sempre desqualificadores da mulher.
Existe a ideia de que o casamento e a maternidade são condições privilegiadas de felicidade para as mulheres. Como se a mulher que “conquista” um homem e constitui uma família tivesse mais valor do que as “solteironas”. Como se ela tivesse alcançado um patamar acima das outras.
Muitas mulheres estão adiando o casamento e a maternidade porque escolheram privilegiar os estudos e a carreira profissional. Eu mesma sou um exemplo: só oficializei um relacionamento aos 33. Tive meu primeiro filho aos 34 e o segundo aos 38. Portanto, a solteirice da mulher pode ser um caminho escolhido ou um projeto de vida ligado a caminhos profissionais. Nessas circunstâncias, a solteirice até é melhor aceita, embora ainda criticada.
Penso que a mulher que “ficou para titia”, que escolheu não se casar e não se submeter aos padrões da família nuclear tradicional, é mais livre para experimentar possibilidades de estar no mundo. Afinal, a solteirice feminina não significa uma vida solitária ou infeliz. Pelo contrário, mulheres nessa condição têm mostrado estar muito melhores do que muitas “bem-casadas”. Algumas delas não estão solteiras só por quererem focar na vida profissional, e sim porque não pretendem se casar mesmo. É uma escolha. Não estão solteiras esperando um príncipe encantado, mas porque preferem se relacionar sem ter o casamento como uma obrigatoriedade. São mulheres que não precisam do outro para se sentirem completas.
Mas, alerto: a solteirice não é um ideal, é apenas uma escolha, entre outras, diferente do que foi convencionado como sinônimo de felicidade. Não sou contra o casamento. Também não sou contra o não casamento. Mas, como o título afirma, “ficar para titia” pode ser libertador. Sou contra o casamento como um destino natural para as mulheres. O ideal é que ele seja apenas uma dentre várias opções de projetos de vida.
Estar ou ser solteiro é um novo estilo de vida e é também uma nova forma de organização familiar, unipessoal. Ser solteira não significa solidão, não significa isolamento. Inclusive, a sociabilidade é maior entre os solteiros.
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Assim, curta sua solteirice e não se preocupe com as pressões sociais. Estar ou não numa relação deve ser uma escolha que parte de você.
Doutora em História, mestra em Educação e graduada em Pedagogia. Professora aposentada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mantém-se na luta cotidiana pela educação de qualidade, democrática e para todos.