COLUNA

A fome no Brasil tem gênero e cor

Dicas de Mulher

A insegurança alimentar grave deve ser combatida por governos, instituições públicas e privadas, além da população em geral

No livro ‘Quarto de Despejo’ (1960), Carolina Maria de Jesus (1914-1977) narra seu cotidiano na Favela do Canindé, em São Paulo. Mulher preta, mãe de três filhos, a catadora de lixo descreveu visceralmente a fome: “Como é horrível ver um filho comer e perguntar: ‘Tem mais?’ Essa palavra fica oscilando dentro do cérebro de uma mãe que olha as panelas e não tem mais”.

Você termina de ler o livro e certas frases permanecem ecoando. “O feijão esqueceu de mim”. “Ontem comemos mal. E hoje pior”. “No dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!”. A fome, retratada nesse potente livro, infelizmente voltou a ser um problema social no Brasil. Atualmente, 33 milhões de pessoas passam fome, e mais da metade (58,7%) da população brasileira vive em situação de insegurança alimentar.

A insegurança alimentar é um fenômeno que ocorre quando um indivíduo não possui acesso físico, econômico e social a alimentos de forma a satisfazer as suas necessidades (segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura). O IBGE classifica a insegurança alimentar em três níveis: leve, moderada e grave. Esta última é caracterizada pela falta de comida e pode chegar à condição de fome.

A fome no Brasil é desproporcionalmente maior entre as crianças de lares chefiados por mulheres pretas. Dos domicílios chefiados por mulheres, 63% vivem em estado de insegurança alimentar – 19,3% em situação de fome. Dos domicílios habitados por pessoas pretas ou pardas, 64% registraram índices de insegurança alimentar – 18,1% em situação de fome. A cara da fome no Brasil é, com certeza, uma mulher preta.

Roberto DaMatta, sociólogo, ressaltou os contrastes da produção de alimentos no Brasil: enquanto o país bate recordes de safras – que são destinadas ao mercado externo -, milhões de brasileiros ainda passam fome.

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‘O Poço’, filme de 2019, é um cruel retrato dessa desigualdade. O longa-metragem mostra uma prisão na qual os detentos são alimentados por uma plataforma descendente. As pessoas que estão nos níveis mais altos comem mais do que o necessário e as que estão nos andares mais baixos ficam com os restos.

Um alento para as mulheres pretas que passam fome no Brasil vem, na maioria das vezes, de mulheres pretas, que são as que mais se voluntariam para ajudar na distribuição de cestas básicas e marmitas para essa população vulnerável.

Mulheres pretas, pobres e periféricas ajudando mulheres pretas, pobres e periféricas. Mulheres que talvez já tenham vivido com fome ou em condição de insegurança alimentar. Mais uma vez recorro a Carolina Maria de Jesus, que escreve: “A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo e nas crianças”.

A insegurança alimentar leve, moderada ou grave (a fome) é um problema complexo e todos devem participar do seu enfrentamento: governos, instituições públicas e privadas e a população em geral. Obviamente, políticas públicas são mais eficientes quando o objetivo é diminuir a desigualdade social, mas o governo atual tem sido ausente no combate dessa tragédia social. Inclusive, desmobilizou vários programas que criavam uma rede de proteção às famílias vulneráveis.

Nas próximas eleições, teremos a oportunidade de mudar o caminho tortuoso que o Brasil tem percorrido nos últimos quatro anos. Enquanto a mudança não ocorre (também porque “quem tem fome tem pressa”), penso que a população pode contribuir com atitudes simples, como a contenção do desperdício, o aproveitamento total dos alimentos, a construção de hortas e cozinhas comunitárias, a realização de feiras livres para a comercialização de alimentos produzidos na comunidade por pequenos produtores etc.

Caso não se multipliquem ações concretas para o combate da insegurança alimentar, realizadas pela iniciativa pública e/ou privada, infelizmente a tragédia da fome pode bater em muitas outras portas. Eu gostaria muito que Caetano Veloso estivesse errado no seu presságio: “Enquanto os homens exercem seus podres poderes, morrer e matar de fome, de raiva e de sede são, tantas vezes, gestos naturais”.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Doutora em História, mestra em Educação e graduada em Pedagogia. Professora aposentada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mantém-se na luta cotidiana pela educação de qualidade, democrática e para todos.