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Como editora do Dicas de Mulher, preciso dizer que pautar conteúdos atuais sobre mulheres tem sido cada vez mais desafiador. E te conto o porquê: notícias ruins circulam todos os dias, prejudicando a nós, mulheres, em diversas esferas de nossas vidas.
No cenário de 2022, ano de eleições, vemos poucas perspectivas de mudanças. Pré-candidatos cada vez menos preocupados em promover qualidade de vida, igualdade, respeito e segurança para mulheres. Além disso, discursos misóginos e sexistas dominam não só as redes sociais, mas também a mídia, chancelando uma série de violências contra nós.
É por isso que, hoje, quero falar de um projeto de extrema importância que promove mudanças positivas e significativas na minha vida e de muitas mulheres. O #LeiaMulheres é o assunto desta vez, do qual falo com extrema admiração e carinho, porque revoluciona nossa maneira de lidar com as histórias, estante de livros e como enxergamos as mulheres, sobretudo aquelas muito diferentes de nós.
O #LeiaMulheres é um projeto e clube de leitura de nível nacional, que existe em mais de 110 cidades do Brasil. Vai de uma ponta a outra na missão de levar a literatura produzida por mulheres a lugares inimagináveis. Começou em São Paulo em 2014, pelas mãos das coordenadoras Juliana Gomes, Juliana Leuenroth e Michelle Henriques, mas já tem se espalhado por outros países também, como Portugal e Alemanha.
A ideia partiu de uma ação da chamada #readwomen2014, idealizado pela escritora britânica Joanna Walsh, que chamou atenção ao pedir para lermos escritoras. Isso me fez – e a muitas outras mulheres – olhar para as próprias leituras e perceber que não faltavam mulheres apenas em nossas estantes, mas em todo mercado editorial, que abre pouco espaço às mulheres – uma realidade ainda existente em 2022, mudando a passinhos lentos.
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Comecei a ser uma das várias mulheres mediando o clube pelo país somente em agosto de 2017. Quando fiquei sabendo dele, quis trazê-lo imediatamente à Maringá, no noroeste do Paraná. Foi bem pertinho do meu aniversário e, naquela época, jamais imaginava que esse seria um dos grandes presentes da minha vida.
Para participar do clube é só chegar, não tem segredo – e homens também são bem-vindos. As mediadoras devem ser mulheres, assim como os livros precisam ser de escritoras, independente do gênero literário/textual ou nacionalidade. Montamos uma agenda com livros a serem lidos e, no dia das discussões, unimos todos para falar não só sobre o que lemos em linhas gerais, mas também como as obras nos atravessaram, para o bem ou para o mal.
Ao falarmos de nossas leituras, inevitavelmente, estamos falando de nós também. Porque se trata de um espaço seguro, onde podemos trazer às discussões os nossos medos e revoltas, sem receio, como se estivéssemos de pés descalços em tapete felpudo, tomando chocolate quente em um dia frio. Essa sensação de acolhimento da mulher por meio da literatura é, pra mim, é uma das melhores coisas que o #LeiaMulheres é capaz de fazer.
Se você me pergunta se o clube de leitura é feminista, eu digo que sim – mesmo que ele não se nomeie desse modo explicitamente. Por quê? Bom, escolher ler mulheres, entender como elas interpretam e representam o mundo por meio de suas narrativas e versos, independentemente de falarem ou não sobre mulheres, é dar voz e vez a uma fatia da sociedade que muitas vezes é silenciada e que até hoje tem pouco espaço.
Uma pesquisa realizada pelo grupo de estudos de Literatura Contemporânea, da Universidade de Brasília (UNB), liderado pela ótima pesquisadora Regina Dalcastagnè, mostra que mais de 70% dos romances publicados por grandes editoras, entre 1965 e 2004, foram escritos por homens. Outros dados agravantes: boa parte desses homens são brancos, héteros, de classe média ou alta e vivem no eixo Rio-São Paulo.
Além disso, percebeu-se também que 60% das histórias têm homens como protagonistas, que refletem também as características dos autores que as produzem: brancos e héteros. Mulheres são pouco representadas como protagonistas e, muitas vezes, são personagens rasas e estereotipadas, principalmente se forem negras. Vale ler toda pesquisa e conferir os dados em detalhes.
Claro que estamos em 2022, e o cenário tem mudado um pouco, sobretudo devido a projetos como o #LeiaMulheres, que de certa maneira exige que mulheres tenham mais espaço e voz no mercado editorial e em prateleiras.
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Editoras, principalmente as independentes e de menor representatividade no mercado, têm se atentado a esse movimento de valorizar autoras, publicando não só mais mulheres, mas também olhando para a pluralidade que é ser mulher e o quanto isso impacta nos escritos.
Mulheres no todo precisam ter voz, mas ignorar recortes de classe, raça e mesmo orientação sexual não é o melhor caminho. Diante disso, editoras como a Malê, que publica apenas pessoas negras, Patuá que publica muitas mulheres – sobretudo poetas, como esta que fala aqui – e selos editoriais como o Auroras, da Penalux, têm feito esforços para publicar mulheres.
Mas essas publicações precisam de leitores e leitoras, de mim e de você. O livro não existe ao ser publicado, mas sim quando está em nossas mãos, enquanto lemos, divulgamos, falamos a respeito, seja em clubes de leituras, eventos literários ou em um café despretensioso com amigos.
E falando especificamente da minha experiência com o #LeiaMulheres, o que percebo como mediadora do clube é que, por meio de conversa sobre obras literárias, uma mulher tem espaço de diálogo, de escuta e, até mesmo, de amparo e aconchego. Poder falar, ouvir e ser ouvida, ações que muitas mulheres ainda estão descobrindo como possibilidades reais.
Você já entrou em uma livraria, olhou sua estante de livros, seus pedidos virtuais de livros ou aquele histórico de download de e-books com atenção direcionada para gênero? Recomendo que faça isso e depois reflita sobre o que observar.
Há cerca de cinco anos, essa não era uma preocupação minha. Até me dar conta que praticamente 85% do que li foi escrito e apresentado segundo o viés masculino. Eu não lia muitas mulheres e nem sequer tinha parado para pensar no motivo que isso acontecia.
Essa percepção foi assustadora e me senti a feminista mais fajuta do universo. Em contrapartida, abriu meus olhos para um cenário muito crítico no Brasil. As grandes editoras publicam mais homens, que, por sua vez, estão mais nas livrarias e eventos que envolvem o livro. Consequentemente, são suas produções – e suas visões de mundo – que acabam sendo mais lidas.
Você imagina o que é a visão de um homem, mesmo que ficcional, sobre a maternidade, por exemplo? Nunca esqueço de um livro de poemas que li há algum tempo chamado “Continuar a nascer”, da Mônica de Aquino, que fala sobre ser mãe, da gestação à vinda da criança ao mundo. É uma das coisas mais realistas que já li sobre essa etapa da vida, sem deixar a beleza e as dores de lado.
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Ou a percepção masculina do que é, para as mulheres, vivenciarem situações de medo ou violência, seja ela verbal, psicológica ou sexual. Ou, ainda, como enxergamos e vivenciamos a nossa sexualidade, seja como mulheres héteros, bissexuais ou lésbicas. O que sabem os homens a respeito? Por mais conscientes que busquem ser, são situações que, no máximo, imaginam como seja – e o exercício é válido, mas ele não dá conta do ser e estar no mundo como mulher.
Ler mulheres é se ver representada, ou ainda conhecer representações de realidades que não condizem a nós, mas que podem promover a empatia e maior entendimento da complexidade que é todo ser humano. É preciso saber o que sentem, como interpretam, o que pensam as mulheres sobre o mundo em que estão inseridas e que, infelizmente, não as acolhe muito bem.
Acredito que projetos como o #LeiaMulheres seja um dos caminhos possíveis de transformação – e, sim, o livro não é acessível a todas nós, esse é mais um problema que o Brasil carrega na conta, que cada dia fica mais cara.
Eu, como mediadora do projeto, leitora assídua e também poeta – sem falar que já trabalhei com a edição de conteúdos de literatura há alguns anos no Homo Literatus e fui professora de redação e literatura – vejo a grandiosidade que é, na vida das mulheres, poder se reunir para falar de um livro e de si mesmas, por meio de suas experiências.
É importante ter um espaço para refletir a partir de uma leitura. Perceber que nunca tinha parado pra pensar nisso ou naquilo, ou que viveu esta ou aquela situação. E, claro, poder reclamar – exercício precioso na vida de uma mulher com pesos em seus ombros – e até mesmo debochar de algo bobo ou patético.
Ler e compartilhar leituras é também fazer amizades, vínculos de afeto e não estar sozinha. Mesmo que essas relações não existam por toda vida, valeram a pena pelos preciosos momentos de alegria, de cuidado e partilha. Por isso, termino dizendo, claro, que leia mais mulheres e participe de um clube de leitura pertinho de você – ou crie um -, faça esse ato de autocuidado e amor.
Fez Letras, mas se encontrou na área de Comunicação. Mediadora do clube de leitura #LeiaMulheres e autora do livro de poemas 'O rio seco que vive em mim'. Gosta de planta, de bicho e de gente, mas mais ainda de histórias.