Dicas de Mulher
Primeiro ato
Em 1987, assisti o encantador filme ‘Nunca te vi, sempre te amei’, que conta a história de uma troca de correspondência, durante vinte anos, entre uma escritora americana e o gerente de uma livraria especializada em edições raras e esgotadas de Londres. O filme mostra o afeto entre duas pessoas que nunca se viram, mas nutriam um profundo sentimento um pelo outro.
Gostei muito do título do filme e ele ficou muito tempo voando no meu cérebro em busca de pouso. Pouco tempo depois, o título desceu e foi parar numa história que ocorreu comigo.
Quando adquiri meu primeiro carro, um velho Fusca amarelo gema de ovo, não desejava que ele falasse (como no filme de 1968). Afinal, ele poderia revelar segredos, contar sobre os lugares duvidosos aonde me levou, as bebedeiras que tomei (eu bebia na época), os amassos no banco de trás… O que eu não sabia, até então, é que o fusquinha serviria de abrigo para alguém que eu desejaria muito que falasse, embora sua natureza fosse silenciosa.
Eu ainda não tinha filhos e adorava carregar meus sobrinhos para lá e para cá no meu possante. Quando eles estavam no carro, eu fingia que era uma senhorinha bem idosa que não enxergava bem. Deixava meus óculos caírem no nariz e fazia de conta que estava com muita dificuldade de manobrar. Parava nos sinaleiros e encenava meu roteiro com a boca murcha, fingindo que não tinha dentes. As crianças riam e gritavam ao mesmo tempo, num misto de alegria e vergonha. Esses sobrinhos hoje já são pais e seus filhos também perambulam comigo.
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Logo que comprei o amarelinho, fiquei muito incomodada com as teias de aranha que frequentemente apareciam dentro do porta luvas. Eu as retirava com as mãos, todavia, no dia seguinte lá estavam elas novamente. A aranha, porém, não se restringiu a esse pequeno espaço. Expandiu seu raio de ação, tecendo fios suspensos que faziam pontes do retrovisor ao volante, e deste ao banco. Quando o carro ficava alguns dias parado, a aranha se ocupava em ligar todas as partes internas do meu fusca, tecendo uma verdadeira obra de arte.
Um amigo contou que elas constroem as teias para capturar os animais dos quais se alimentam. Sabendo disso, parei de desmanchar as teias. Às vezes, eu perdia o controle e, com intenções assassinas, politicamente incorretas, procurava a impostora, mas nunca a achava. Até que ela me venceu pelo cansaço e decidi adotá-la como um pet. Obviamente, um animal de estimação nada convencional. Nunca estive sozinha nesse hábito. Se vocês pesquisarem na internet, vão descobrir que muita gente adota aranhas como pets, principalmente as tarântulas. Como nunca a vi, não sei que espécie ela era e nem se era fêmea ou macho. Gosto de pensar que a minha pet era uma representante das aranhas vulgarmente conhecidas como saco-amarelo, e que ela foi atraída pela cor do meu fusca, para se disfarçar com mais facilidade.
Inclusive, como as aranhas vivem pouco tempo (um ano, em média), e eu fiquei com esse fusca durante uns 3 anos, é possível que a primeira tenha morrido e outra, depois outra, quem sabe outra ainda, tenham se instalado no mesmo lugar, com os mesmos costumes. Eu sabia que, se a mantivesse ali, ela poderia inclusive ser benéfica, livrando o fusca de outras criaturas rastejantes e voadoras mais repugnantes, como as baratas, por exemplo. Odeio baratas!
A aranha tornou-se minha amiga invisível. Não imaginária, afinal, ela existia concretamente, embora eu não a visse. Desenvolvi por ela um surpreendente afeto. Todos os dias eu a cumprimentava e ela, toda ouvidos, no seu mutismo habitual, nada falava. O diálogo, quer dizer, o monólogo era intenso. Ela escutava minhas lamúrias, minhas risadas, meus cantares. Não sei se vocês sabem, mas as aranhas, apesar de não terem orelhas com os tímpanos típicos da maioria dos animais, possuem um senso apurado de audição.
A amizade era tamanha que resolvi lhe dar um nome. Na época, uma das minhas sobrinhas era chamada pelas outras de Mirthes, nome de uma personagem avarenta que participava de uma propaganda de eletrodomésticos, exibida na televisão. Eu gostava tanto de ouvi-las falando Mirrrrrrthes que resolvi dar esse nome para meu pet. Era um tal de ‘bom dia, Mirthes’, ‘boa noite, Mirthes’, ‘você não sabe da maior, Mirthes…’
De fato, nunca vi Mirthes, mas eu a amava (o título do filme pousou aqui). Meu porta-luvas era sua casa, segura e confortável. Ela era livre e, ao mesmo tempo, estava protegida da chuva e do frio. Dirigir o fusca com a Mirthes no carro era emocionante. Inclusive, é comum aranhas gostarem de habitar carros. Pelo menos duas marcas de automóveis já tiveram de convocar recalls por causa de aranhas. Bizarro, né?
Bem, essa história não acaba aqui. No próximo ato desta mini novela, Mirthes voltará.
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Doutora em História, mestra em Educação e graduada em Pedagogia. Professora aposentada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mantém-se na luta cotidiana pela educação de qualidade, democrática e para todos.