Dicas de Mulher
Meu pai era um grande pescador. E sua grandeza não se devia apenas ao fato de saber pescar e levar muitos peixes para casa. Ele tinha muita paciência, para esperar a hora certa da fisgada e também para ensinar essa arte às suas quatro filhas. Ele fazia isso, numa época em que as “coisas de meninas” não incluíam esse tipo de atividade. Tenho ótimas recordações desses momentos. Como bom pescador, meu pai também sabia contar histórias bem “imaginosas” e, talvez, eu tenha herdado esse dom dele. Hoje, a história que vou contar igualmente envolve peixes. Bem grandes, iguais aos que meu pai costumava pescar.
Os aplicativos de relacionamento são um fenômeno global há cerca de uma década (você deve estar se perguntando: o que tem a ver “alhos com bugalhos”? Calma, meu leitor, já, já você vai entender). Eu demorei muito para aderir a essa tendência de usar aplicativos para paquerar. Mês passado fiz um perfil, listando alguns atributos que, presumi, gerariam algum engajamento. Entre outras informações e critérios para a seleção dos interessados, alertei: machistas, misóginos, racistas, homofóbicos, xenofóbicos, etaristas, gordofóbicos e armamentistas, apertem o X. Eu não conseguiria ter qualquer tipo de relacionamento com pessoas que tivessem esses comportamentos.
O mercado digital dos afetos tem vantagens e desvantagens. A escolha e a rejeição das ofertas disponibilizadas no cardápio ocorrem num gesto simples. O dedo corre na tela do celular e, para a esquerda, significa que o pretendente foi excluído, para a direita, quer dizer que o perfil foi “curtido”. A meu ver, inclusive, o gesto tinha que ser invertido: para a esquerda, gostei; para a direita, recusei. Digo isso, porque considero o afeto um sentimento revolucionário e, por isso, ele se coloca mais à esquerda das tendências dessa sociedade regida pela fria lógica do mercado.
Consultei o “cardápio” e X, X, X, X, X, X… Vez ou outra “dei like”. Recebi algumas curtidas e, em alguns casos, deu match. No geral, achei o catálogo bem desinteressante. Findada a oferta inicial do cardápio de homens que atendiam aos parâmetros que estabeleci (alguns atendiam realmente, outros mentiram), os apps perguntaram se eu queria repassar o cardápio, rever filtros ou aumentar o raio geográfico de procura. Teimosa, aumentei o raio. Novamente X, X, X, X, X… acho que fui resiliente, aguentei uns 15 dias, porém, exaurida, exclui meu perfil. Achei as interações insatisfatórias e até meio decadentes. Curiosamente, falou mais alto meu lado pesquisadora, pois identifiquei farto material para minhas colunas.
Observei que muitos homens que “curtiram” meu perfil, não atentaram para minha clara determinação de afugentar os que não respeitam direitos sociais já consagrados e os que flertam com alguma das tendências que desaprovei no perfil. Esses, eu os enquadrei no grupo dos “muito mal intencionados”. Identifiquei alguns homens cometendo o crime de postar fotos ao lado de crianças. Possivelmente, seus filhos ou netos foram incluídos nas postagens como iscas para fisgar e impressionar as mulheres, passando a impressão de que são bons pais, responsáveis e carinhosos. Mesmo assim, não importa, essa atitude é criminosa, já que expõe os menores. Os cachorros também são usados como iscas para tentar derreter o coração das mulheres. Cuidado, lembre-se do ditado “quem vê close, não vê corre”.
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Verifiquei também, que muitos homens exibem fotos dentro de carros caros ou encostados neles. Não dá nem para saber se o carro é realmente deles. Mesmo não sendo especialista no assunto, sei que os carros simbolizam o poder masculino no contexto machista no qual vivemos.
Nos apps de namoro também é muito comum a presença da religião nas fotos. Ela aparece de várias formas: em mensagens coladas sobre as fotos, na imagem de homens segurando a bíblia ou um rosário, ou nas fotos de homens posicionados na frente de uma cruz. São apelativas e estereotipadas. Também, não significa que esses homens pratiquem princípios religiosos humanistas.
Enfim, vi de tudo. Porém, o que mais chamou minha atenção foi que cerca de 70% dos homens da faixa etária que escolhi, de 55 a 63 anos, postam fotos exibindo grandes peixes. Isso mesmo, peixes enooormes! Ora colocados na frente de seus rostos, ora na frente de suas “partes baixas”. Em cima, provavelmente para esconder sua identidade ou porque eles não correspondem aos ideais de beleza impostos pela sociedade. Em baixo, talvez para esconder o que eles acham pequeno ou, ao contrário, para representar suas “grandezas”, afirmando seu poder de macho. Não vi nenhum homem exibindo lambaris e tilápias. E, sabemos, a pesca é uma atividade tradicionalmente exercida pelos homens. Assim, essas fotos com peixes grandes reafirmam a construção dos papéis sociais de gênero tradicionais. Na sociedade machista, os homens ocupam espaços de dominação e exibem seus símbolos, como nessas imagens.
Essas fotos me fizeram rir muito. Contei o ocorrido para várias pessoas. Um amigo, que, aliás, está querendo ser mais do que meu amigo, disse:
– Se eu fizesse um perfil nesses apps eu postaria uma foto segurando uma lata de sardinha na frente do rosto e outra na frente das “partes baixas”.
– Por que uma lata de sardinha e não uma tilápia ou um lambari?
Perguntei. Ao que ele respondeu:
– Não sei pescar. Então, eu compro peixe no mercado ou numa peixaria.
– Mas, por que uma lata de sardinha?
– Sei lá, talvez porque a sardinha é um peixe pequeno ou porque elas ficam amontoadas na lata. Não sei. Falei sem pensar muito.
Na hora que ouvi suas explicações meu cérebro explodiu em inúmeras sinapses inventivas. Adorei a metáfora da lata de sardinha em oposição ao peixe grande. Pensei: se eu tivesse que escolher entre um homem que posta foto nos apps segurando um peixe grande na frente do seu órgão sexual ou um homem que posta foto segurando uma lata de sardinha, nessa mesma posição, eu escolheria o segundo, com certeza. Meu amigo melhorou muito sua posição no “machometro”, usado para medir os níveis de machismo presentes nas atitudes dos homens. A lata de sardinha, se comparada ao peixe grande, é uma metáfora bem menos delirante da potência masculina. Além de ser um peixe pequeno, a sardinha, quando enlatada, tem um prazo de validade muito mais estendido do que os peixes que aqueles homens exibem. Isso pode sugerir um relacionamento mais longo do que o sexo casual procurado pela maioria dos homens.
Além disso, a sardinha é um peixe que pode atuar como afrodisíaco, porque contêm altas taxas de ômega 3, relacionado à produção e manutenção das taxas de hormônios sexuais. Essa possibilidade, torna a sardinha bem mais atraente, se comparada ao peixe grande.
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A lata de sardinha também me parece uma perfeita representação da nossa sociedade massificada, padronizada, vivendo apertada dentro de limites impostos. E, além disso, lembremos, “peixe grande” tem sido uma expressão usada para denominar os chefes de quadrilhas ligadas ao crime. Os grandes corruptos que abocanham vantagens financeiras são “peixes grandes”. Muitas vezes, são protegidos por políticos oportunistas e escapam da rede da justiça. Já a expressão “peixe pequeno” é usada para referenciar os trabalhadores, a massa popular, sem direitos sociais garantidos.
De todas essas inferências, concluí que meu amigo tem a qualidade de assumir sua imperfeita e humilde condição masculina na atual conjuntura. Bem como, usa símbolos que fazem referência aos mais vulneráveis na estrutura da sociedade. Enfim, dei risada com esse episódio, mas, no geral, não gostei da experiência de buscar paqueras no mercado digital dos afetos. Tive a impressão de estar escolhendo um produto numa prateleira de supermercado, no qual predomina a superficialidade, a fluidez, a descartabilidade e a incerteza. Sei que nossos afetos subjetivos são ligados às práticas culturais da sociedade em geral e que, no atual cenário de crescente precarização das relações sociais, certamente as interações afetivo/sexuais também são atravessadas por esse mesmo processo. Porém, acho que nos apps essa precarização aparece bem mais exacerbada. Eu prefiro mergulhar no mundo real da busca por romance, mesmo sabendo que ele também é atravessado por essa precarização. Mas, valeu a curta experiência. No mínimo rendeu uma boa história.
Doutora em História, mestra em Educação e graduada em Pedagogia. Professora aposentada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mantém-se na luta cotidiana pela educação de qualidade, democrática e para todos.