COLUNA

O que o caso Johnny Depp e Amber Heard ensina sobre a espetacularização da violência?

Reprodução / Law & Crime Network

É preciso olhar para violência não como uma forma de entretenimento, mas como algo a ser combatido imediatamente

Começo me definindo como uma pessoa realista-positiva. O que isso significa? Não interpreto a vida com fantasias ou flores, mesmo gostando muito de ambas. Me apego à realidade. Costumo enxergar “a vida como ela é” (com licença, Nelson Rodrigues), me agarrando aos fatos, sem lamentos ou dramalhões da minha parte.

Ainda assim, busco encarar a realidade de modo bastante positivo. Partindo desse real, penso em como tornar algo ruim ou incômodo em uma possibilidade de um amanhã melhor, por meio das ferramentas que me são disponibilizadas ou que conquistei. Idealista? Talvez, e tudo bem.

Dito isso, vamos agora à presença da violência na mídia. E você pode me perguntar: “Ué!? O que sua a sua vibe realista-positiva, totalmente individual, tem a ver com esse assunto?”. Respira um pouquinho e vamos caminhando a passos lentos – já corremos demais na vida quase todos os dias, não é?

Muitos casos de violência contra mulheres que repercutiram na mídia acabaram esbarrando em duas situações. 1. Ficamos aterrorizadas ao perceber do que são capazes os homens. 2. Mulheres se movem, na maioria das vezes juntas, e mais denúncias são feitas, dando força às vítimas.

João de Deus, por exemplo, tem um longo histórico de crimes sexuais. No entanto, somente quando algumas vítimas deram entrevista ao ‘Conversa com Bial’, na Globo, relatando abusos em atendimentos espirituais, que a justiça se moveu. Os casos ganharam tamanha repercussão que não foi possível ficar de braços cruzados, nem mesmo silenciar. Assim, mais de 300 denúncias foram feitas contra o abusador.

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Temos ainda o caso de Mariana Ferrer, o qual trouxe um desdobramento legal importante para as lutas do feminismo. A Lei Mari Ferrer torna crime a violência institucional, ou seja, que vítimas ou mesmo testemunhas sejam submetidas a procedimentos constrangedores ou invasivos que as façam reviver um abuso sexual sem necessidade.

Outro caso de violência está presente na mídia há cerca de seis semanas: Johnny Depp e Amber Heard. Há tempos não vemos uma repercussão tão grande de um caso envolvendo famosos. Os dois estão não só em todos os jornais, revistas e portais, mas também nas redes sociais, terreno fértil para discussões nem sempre muito embasadas.

Os advogados de ambos apresentaram suas alegações. Em breve, o júri deve anunciar o veredicto final. Ação que muitos aguardam como se fosse um episódio que fecha uma série daquele famoso serviço de streaming. Só faltam as pipocas.

E o que aprendemos com esse caso? Tem alguma repercussão positiva?

A batalha judicial mais acompanhada dos últimos tempos

Cá estou para narrar brevemente o caso, sem pretensão alguma de dar conta de tudo. Porque é impossível, é uma teia de aranha gigantesca. Mesmo assim, sinto a obrigação de sintonizar você, leitora. Caso não esteja por dentro do caso Johnny Depp e Amber Heard, eu te conto. Sigamos!

Pode-se dizer que tudo começou com a publicação de um artigo de Heard no ‘The Washington Post’ em 2018. Embora não tenha citado nomes, alegou ser vítima de violência doméstica. Com isso, Depp a processa em US$ 50 milhões. Após ser acusada de farsante, a atriz processa o ex-companheiro em US$ 100 milhões. A partir disso, o julgamento passou a envolver ex-relacionamentos, amigos e famosos. Fotos, vídeos e depoimentos mostram um casal que sustentou uma relação extremamente tóxica, em que ambos foram violentos.

Não quero, aqui, entrar no mérito de quem foi mais violento com quem, ou quem é mais mocinho nesse caso. Afinal, quem sou eu, não é mesmo? Meu intuito é outro: refletir sobre os motivos da tamanha espetacularização da violência partindo do caso Johnny Depp e Amber Heard.

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A violência como entretenimento

A violência sempre chamou atenção, assim como os crimes de modo geral. São temas de livros, filmes, séries, peças de teatro, novelas. Isto é, estão presentes nas mais diversas narrativas que consumimos, até mesmo naquela conversa de bar entre amigos, eventualmente.

Mas até que ponto “consumir” violência tem aspecto positivo? Mesmo tendo pesquisado esse “fenômeno” durante um tempo, posso dizer que não cheguei a nenhuma conclusão. Não acredito que a violência não deva ser representada em obras e devamos agir como se estivéssemos em um paraíso. Defendo que essa representação leve leitores e espectadores para a reflexão. Ou seja, como tal ato de violência levou a determinado acontecimento e quais foram as consequências disso, bem como o que isso mostra a respeito de nós, humanos.

Assim, a mera exposição da violência de modo cru, ou, dizendo em linguagem informal, “tiro, porrada, bomba e vida que segue”, nos transforma em meros receptores de algo que nos é apresentado como cristalizado, corriqueiro, banal.

O que isso tem a ver com Depp e Amber, uma vez que não se trata de ficção, mas de realidade? No julgamento, assim como em muitas narrativas ficcionais, a violência tem sido apresentada pela mídia com caráter de entretenimento.

Reflexo disso é que em redes sociais, como o Instagram, Twitter e até mesmo TikTok, essa batalha judicial entre os atores se tornou um terreno do humor. Talvez o termo correto seja “deboche”. Não é divertido, nem mesmo saudável se satisfazer ao observar a vida de duas pessoas que parecem ter se agredido mutuamente, em uma relação tóxica.

Com isso, mais uma vez, ela vem à tona: a espetacularização da violência. Na sua forma mais pura e simples. Inclusive, a mídia conservadora ‘The Daily Wire’ auxiliou muito nisso, gastando milhares de dólares ao promover propagandas anti-Amber Heard no Facebook, conforme avaliou o ‘Vice World News’.

Enquanto isso, Amber foi desacreditada e, como muitas mulheres, pintada como instável, louca e demais adjetivos que nós, mulheres, recebemos com alguma frequência – o que também é uma forma de violência na e pela linguagem, com poderes inimagináveis.

Até o movimento feminista #MeToo foi desacreditado ao defender a atriz. Eu e você, se ousarmos defendê-la em nossas redes, provavelmente, seríamos alvos de ataques e piadas, como tem acontecido com mulheres que se posicionaram.

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Independente da decisão do júri, transformar um caso de violência em um tribunal público, uma arena onde atos violentos são motivos de riso só faz com que nós, mulheres, mais uma vez sejamos reduzidas a pessoas sub-humanas, seres inferiores, não dignos de respeito e amparo legal.

Não me lembro de ver tanto deboche e descaso com homens agressores. Nem quero que a ridicularização do outro se torne parte de nós. O fato é que nós, mulheres, culpadas ou não, somos alvo de ataques e as violências que sofremos podem tornar-se um espetáculo, comentado nas redes sociais sem empatia e respeito.

Vale lembrar, por exemplo, o caso de Sandra Mara e um homem em situação de rua. Ela teve a vida completamente exposta e ridicularizada, inclusive pelos jornais. E isso mesmo estando internada em uma clínica psiquiátrica, sem poder se defender ou tomar qualquer atitude.

Então, o que de positivo tiramos do caso de Heard e Depp?

Lembra da Estela realista-positiva? Está aqui, ó – levantando a mão!

Após alguns passos aqui e ali, desejo que esta coluna, a respeito da repercussão do caso judicial dos atores, te faça refletir sobre a presença da violência no cotidiano. Que você, assim como eu, não fortaleça a violência como fonte de audiência e/ou engajamento nas redes sociais. Que não façamos isso com Sandra Mara, Amber Heard ou qualquer outra mulher.

Se a violência está presente em nossas vidas, e está, fortemente, precisamos usar espaços e vozes para combatê-la e transformar o mundo onde vivemos. Nessa missão, veículos de mídia são fundamentais, como este em que escrevo! Se não acreditarmos no poder transformador das ferramentas que temos em mãos, pouco nos resta de humanidade. Vamos juntas e juntos nessa?

P.s.: Paula Apoloni, escrivã da polícia que trabalha no enfrentamento da violência contra mulher, me ajudou a levantar esses casos e construiu comigo algumas das reflexões deste texto. Obrigada, Paulinha, pelo diálogo!

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Fez Letras, mas se encontrou na área de Comunicação. Mediadora do clube de leitura #LeiaMulheres e autora do livro de poemas 'O rio seco que vive em mim'. Gosta de planta, de bicho e de gente, mas mais ainda de histórias.