Dicas de Mulher
A frase que dá título a esta coluna certamente assombra e remete a períodos históricos e episódios nos quais predominou a discriminação, das mais variadas formas. Um exemplo é a longa história de segregação racial institucionalizada nos EUA. Até a década de 1960, ainda era comum encontrar, na entrada de estabelecimentos comerciais, placas com a frase “proibida a entrada de negros”.
A proibição da frequência de crianças a lugares tem crescido mundialmente. E não estou me referindo a lugares nos quais tradicionalmente elas não podem entrar, como uma casa de striptease ou um cinema que esteja exibindo um filme pornográfico. São restaurantes, hotéis, resorts, bares, teatros etc.
Há cinemas que oferecem salas para uso exclusivo de adultos, mesmo que os filmes nelas exibidos não o sejam. Há estabelecimentos que criam áreas específicas para crianças, como uma Empresa Aérea que informa aos clientes em quais assentos haverá uma criança para que possam selecionar poltronas distantes, criando quiet zones.
Tive meus filhos no final dos anos 1990 e já naquela época eu sentia os “olhares tortos” quando tinha que amamentar ou trocar fraldas em público. De lá para cá, essa intolerância cresceu e, hoje, atinge também o modo como as crianças são educadas no âmbito familiar. É evidente que há modelos diferentes de educar os filhos, uns mais rígidos, outros mais liberais, mas todos devem ser acolhidos.
Essa crescente tendência de intolerância com as crianças vem sendo chamada de Childfree, ou seja, “livre de crianças”. Esse movimento nasceu por volta dos anos de 1970 nos EUA e, a princípio, defendia uma escolha legítima, a de uma pessoa não gerar filhos, caso não desejasse. Posteriormente, a partir dos anos 1980, o movimento assumiu novos contornos: expandiram a ideia para a possibilidade de frequentar ambientes em que crianças menores de 12 anos não fossem permitidas.
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Ou seja, do “não quero ter filhos”, o Childfree foi para o “não gosto de crianças” ou “não quero conviver com crianças”, chegando a extremos como o escrito numa placa na frente de um bar em São Paulo: “aqui seu cão é bem-vindo, mas crianças favor amarrá-las ao poste!”. Após fortes reações nas redes sociais, o bar alegou tratar-se de uma brincadeira e retirou a placa. Sabemos bem que uma ação só pode ser considerada uma brincadeira quando todos os envolvidos se divertem. Não foi esse o caso.
Nas redes sociais dos grupos Childfree, os integrantes afirmam que querem o direito ao sossego, à tranquilidade e a não conviver com a falta de limites, a má educação, os gritos, as birras e o choro das crianças.
Estabelecimentos comerciais justificam não ter espaços e/ou estrutura adequados para receber crianças, quando, na verdade, deveriam adaptar seus ambientes para receber todas as pessoas, sem diferenciá-las.
Como já disse, a intolerância não é só contra os menores de 12 anos. Já que as crianças não circulam sozinhas, a discriminação inclui, principalmente, as mães, que culturalmente são as que mais se responsabilizam pelos filhos.
No Brasil, há mais de 11 milhões de mães solo e elas são muito afetadas por esse tipo de pensamento. Em geral, essas mães não possuem uma rede de apoio para ajudar a cuidar dos seus filhos e precisam levá-los aos lugares dos quais gostam ou precisam frequentar. Essas mulheres, além de terem de enfrentar as consequências desse tipo de intolerância na condição emocional de seus filhos, ficarão, com essas proibições, mais isoladas da convivência social, ou seja, mais solitárias na maternagem.
O direito de optar por ter ou não ter filhos é totalmente legítimo e válido. Porém, não aceitar crianças em espaço público é discriminatório e infringe os direitos delas e de seus responsáveis. É claro que há exceções, como lugares inapropriados a esse público ou programações que tenham definido antecipadamente a faixa etária que não pode consumir o produto oferecido.
Porém, de modo geral, esse movimento de apartação das crianças pode servir de precedente para que outros grupos sejam alvo desse tipo de discriminação, como os idosos, os negros, a população LGBTQIA+, os obesos, os portadores de necessidades especiais, os estrangeiros etc.
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A tendência Childfree tem colaborado para o crescimento de um nicho de mercado consumidor de serviços só para adultos. A iniciativa privada está de olho nas pessoas que podem pagar por esses ambientes. De um lado, está a liberdade de escolha, o poder de compra de uma parcela da população e comerciantes ávidos pelo lucro. Do outro lado, estão os cidadãos portadores de direitos sociais.
O Estado democrático deveria mediar essa contenda, garantindo o cumprimento dos direitos sociais e a convivência civilizada e fraterna entre os diferentes. Deveria, também, criar políticas públicas que gerassem melhores condições para o exercício da maternidade, como a ampliação das vagas nas Instituições de Educação Infantil, para as quais as filas de espera são imensamente maiores do que a oferta.
As mães mais afetadas pela exclusão dos ambientes são as pobres, que não possuem rede de apoio para ajudar a cuidar de seus filhos e nem condições financeiras para pagar, por exemplo, uma creche privada, uma babá ou uma colônia de férias.
Assim, o Childfree é um movimento extremamente elitizado. Pessoas pobres, além de não terem condições de pagar pelos serviços “livre de crianças”, serão as mais afetadas pelas discriminações nesses ambientes.
É importante não perdermos de vista que crianças são seres em formação e a convivência com adultos, professores, a vida em sociedade, a frequência a todos os tipos de ambientes que não coloquem sua vida em risco ou que não tenham programação proibitiva a essa faixa etária, é salutar e necessária. Impedir a socialização delas em qualquer espaço não colabora com seu desenvolvimento. Pelo contrário, afastar as crianças do convívio vai dificultar o aprendizado social que ocorre de várias maneiras, inclusive por meio das interações com os adultos.
Há muitas questões complexas que permeiam a proibição da frequência das crianças em certos ambientes. Podemos, por exemplo, indagar: qual seria o padrão da criança “desejada” pelos intolerantes? Silenciosa, agradável, limpa, bem-vestida, que não derruba coisas, não corre, não brinca, não experimenta o mundo? Por quem e como foi estabelecido esse padrão? Ele é real? Ora, crianças falam alto, gritam, são espontâneas, mexem nas coisas. Isso não é falta de educação, é simplesmente a infância se manifestando.
Além disso, se uma parcela da sociedade entende que as crianças não estão obtendo êxito em sua jornada social, o olhar precisa se estender àqueles que são responsáveis por criá-las e inseri-las no mundo, isto é, os adultos (inclusive os intolerantes), os pais, as escolas. Será que apenas elas que estão apresentando inabilidades no convívio social? E os adultos? Quem nunca teve de lidar com um adulto bêbado ou mal-educado? Com certeza, crianças brincando não fazem mais barulho do que um grupo de adultos em um bar.
A infância, que é uma condição cultural, teve diversas transformações ao longo da história. Somente em meados do século XX ela passou a ser reconhecida como uma fase de desenvolvimento diferente da vida adulta. As crianças passaram a ter direitos sociais e merecer a proteção do Estado e da sociedade. Os estudos científicos sobre a infância como fase específica de desenvolvimento em muito colaboraram com essa atenção especial a elas.
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Ainda assim, mesmo com todos esses avanços, podemos afirmar que a infância que conhecemos hoje ainda está engatinhando. Surgiu há menos de um século e ainda estamos aprendendo a lidar com ela. O que requer cautela (pesquisas, debates) em qualquer decisão a ser tomada quando crianças estão envolvidas.
Todo esse movimento de intolerância à infância tem causado reações diversas. Esta coluna foi escrita como uma reação. Mas há inúmeras outras. Cito como exemplo o movimento que surgiu em São Paulo sob o título “Vai ter criança sim”. Os organizadores convocam as pessoas a ocuparem, junto com seus filhos, vários lugares da cidade. No site do grupo está escrito: “Saia com as crianças! Viaje, passeie, leve seus filhos, sobrinhos, netos, vizinhos, para onde você acha que eles devem ir!”
Para garantir a legítima presença de seus filhos nos espaços urbanos é preciso estar informado sobre seus direitos. Vale conferir a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente, ambos asseguram, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos fundamentais das crianças referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Também é necessário denunciar situações nas quais esses direitos sejam negados às crianças. Há vários tipos de violência praticados contra a infância, e a exclusão dos espaços é uma delas. Assim, é necessário acolher as crianças e suas mães, criando espaços mais diversos e solidários.
O combate a todo tipo de intolerância é fundamental para garantirmos a convivência numa sociedade que se quer democrática.
Doutora em História, mestra em Educação e graduada em Pedagogia. Professora aposentada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mantém-se na luta cotidiana pela educação de qualidade, democrática e para todos.