Estela Lacerda
Confesso que, até ontem, meu tema da coluna desta semana era outro, como a inflação impacta, limita ou nem mesmo permite a qualidade de vida das mulheres. Não tão ligado feminismo diretamente, mas ainda é sobre ele também. Afinal, vivemos em uma sociedade movida pelo capital.
O fato é que ontem, durante o trabalho, estava pautando conteúdos sobre violência contra mulheres PCDs e a importância do feminismo indígena. Assim, como sempre, li a respeito, pesquisei fontes e possíveis entrevistadas, referências nos temas. Sendo que, pouco tempo antes disso, eu estava falando sobre vagas afirmativas, principalmente pensando em mulheres negras.
Após sair do escritório e ganhar as ruas, dei play no novo podcast da ‘Folha de S. Paulo’, chamado ‘Rádio Folhinha’. O episódio da vez era o “Feminismo”, em que a jornalista Tatá Ribeiro fala com a (queridíssima) Renata Senlle, estudiosa do tema e membro da organização Política é a mãe.
Esse podcast é voltado às crianças, mas eu estava curiosa pelo conteúdo, se era didático e conseguia se comunicar efetivamente com ‘serumaninhos’ de seis anos – preocupações de quem deu aula de redação para crianças. Por fim, o episódio acabou reacendendo as reflexões que eu estava tendo ainda no trabalho.
Ao terminar o podcast, eu estava na feira – sem me dar conta do caminho até ali -, onde compraria frutas e verduras para minha casa, como faço toda semana. Sempre fui observadora, mas mais do que nunca, me dediquei a olhar as mulheres que trabalhavam ali na feira e suas potenciais clientes.
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Revi a Maria (nome fictício), senhora japonesa da barraca de flores, a quem ensinei a usar a maquininha de cartão. Um dia, fui até lá e ela estava sozinha, vendendo só para quem pudesse pagar em dinheiro, limitando suas vendas no dia.
Também revi a Sônia (nome fictício), que trabalha com o esposo na barraca de bananas e costuma separar banana-pão para mim – ambos chamam de “banana de fritar”, o que me lembra infância. Sempre compro essa espécie lá, mas um dia fui à barraca, não tinha e fiquei com aquela cara de “poxa”. Depois disso, nunca mais fiquei sem minhas bananas, quando é época. Assim, com todo gosto, indico a barraca da dona Sônia para todo mundo.
Revi todas as mulheres feirantes que me alimentam toda semana, com mais carinho e admiração do que nunca. E vi que, basicamente, são elas que movimentam a feira: organizam as barracas, atendem aos clientes, negociam e até mesmo ajudam a vizinha da barraquinha ao lado.
Saindo da feira, vi uma mulher grávida tentando atravessar na faixa em um local caótico, em horário de pico. Ela tinha medo de encarar a rua e arriscar atravessar, não havia semáforo. Os motoristas sequer a viam. Até que eu e outra mulher, fizemos algo comum por aqui que é ligar o botão “os motoristas não são doidos, tão vendo a gente”. Conseguimos parar o trânsito finalmente, para que a gestante (e nós duas) pudesse atravessar. Curiosamente, foram mulheres que pararam.
Ao cruzar a rua, quase virei o pé em uma rampa para cadeirantes que estava toda obstruída. Então, pensei na falta de acessibilidade que não só uma mulher, mas qualquer pessoa enfrentaria ao precisar passar por ali, tendo que, provavelmente, se arriscar no acostamento, ao lado dos carros apressados.
Chegando em casa, acompanhei o fluxo de estudantes a caminho da universidade, que fica pertinho da minha casa. Havia muitas mulheres, mas todas brancas. Mesmo que as cotas raciais tenham sido aprovadas, a maioria esmagadora dos alunos é branca, sejam homens ou mulheres.
A partir daí, voltou à minha cabeça o tema do podcast que estava ouvindo.
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Eu sempre penso até onde vai o meu feminismo. Ele acolhe ou exclui ainda mais? Sou uma feminista que leva o movimento para todas as minhas relações, espaços de convivência e qualquer ação que eu faça?
Quero dizer que sim, que o meu feminismo está de braços abertos a todas as mulheres. Negras, amarelas, indígenas, PDCs, neurodiversas, trans, todas sem exceção. No entanto, como mulher branca e que tem ou conquistou privilégios, eu erro. Provavelmente, meu feminismo é falho em diversos momentos – assim como já foi em outros no passado, dos quais já me dei conta.
Acredito que o grande exercício que nós, mulheres feministas, devemos fazer é: observar, refletir e, sempre que possível, agir positiva e afirmativamente. Olhar para tudo com demora, com paciência. Só assim, atentando-se às mulheres ao nosso redor, com empatia e com escuta aberta, é que nosso feminismo vai ser mais igualitário.
Saber ver e ouvir é o caminho para descentralizarmos nosso olhar de nós mesmas e de nossas dores. É importante olhar para si e suas ações, refletir sobre quem somos e o que fazemos. Mas, sem olhar para as outras mulheres, nunca vamos sair da zona de conforto e crescer enquanto seres humanos.
Nosso feminismo não será mais acolhedor e nem dará conta da pluralidade que é ser mulher se não olharmos para além da nossa realidade, que está muito mais perto do que podemos imaginar. A mãe que lava, passa, cozinha e, por vezes, ainda trabalha fora; a faxineira que trabalha na sua casa ou no seu trabalho; a caixa de supermercado; a feirante do bairro etc.
A poeta Audre Lorde, inspirada na filósofa Angela Davis, dizia que “não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. Acredito que algo semelhante se possa dizer a respeito do feminismo. Não basta ser feminista, é preciso ser contrária à exclusão das mulheres do movimento.
Fez Letras, mas se encontrou na área de Comunicação. Mediadora do clube de leitura #LeiaMulheres e autora do livro de poemas 'O rio seco que vive em mim'. Gosta de planta, de bicho e de gente, mas mais ainda de histórias.