Dicas de Mulher
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Onde quer que o racismo aconteça – principalmente quando dirigido à uma criança – é algo violento e perturbador. Contudo, os sentimentos de inadequação e de vergonha ficam ainda mais latentes quando somos acometidos por esse tipo de agressão dentro da escola, ambiente que deveria garantir nosso bem-estar e proteção incondicional.
Sinto muito por sua criança ter sido vítima desse crime. A primeira ação deve ser de acolhimento. Certifique-se de dizer que ela não fez nada de errado nem provocou essa situação sob nenhum aspecto. Fale sobre racismo e dê nome ao que ocorreu.
A segunda medida é comunicar a escola, formalizando uma denúncia. Igualmente imprescindível é a ida à uma delegacia para registrar um boletim de ocorrência, uma vez que racismo é crime.
Essa orientação tem, muito além do desejo de reparação, um respaldo jurídico, como me explicou a advogada Thaís Proença Cremasco, conselheira estadual da OAB-SP e ativista dos direitos sociais. Segundo Thaís, cujo filho foi vítima de racismo em um caso que recebeu atenção midiática pelo teor das agressões e graças à conduta da mãe, a autoridade policial não pode se recusar a registrar a ocorrência. Caso não tenha provas, como prints ou vídeo, a própria narrativa da criança basta. “Cabe também uma denúncia no conselho tutelar e uma ação judicial na esfera civil”, orienta Thaís.
De acordo com a co-fundadora do coletivo Mulheres pela Justiça, o objetivo da denúncia ultrapassa a punição. Esse recurso é uma forma de que a sociedade e autoridades competentes tenham acesso a importantes dados e possam, a partir daí, pautar debates de políticas públicas.
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Além disso, exija da escola e das famílias envolvidas não apenas retratação, mas reparação. Digo reparação porque pensar em punição do agressor pode ir contra o lema de que a escola não pode desistir do aluno. O problema é de qual aluno estamos falando. Poupamos o racista a que preço? Evitamos o constrangimento de denunciar, de processar os culpados e deixamos a ferida de quem sofreu racismo infeccionar diante da impunidade? Para quem foi racista pode ter sido a primeira vez. Para quem é negro, certamente não foi a primeira e não será a última.
Uma amiga, ao acompanhar o caso recente de expulsão de alunos racistas, disse: “se fosse meu filho a expulsão seria minha menor preocupação. Eu estaria mortificada não pelo castigo, mas por saber que criei um jovem que desrespeita a dignidade de outro ser humano dessa forma”. Me peguei pensando se o racismo seria menos recorrente caso mais pessoas, como ela, se colocassem no lugar de reconhecimento da responsabilidade sobre esse problema.
Eu, infelizmente, posso falar com propriedade sobre o que significa ser uma criança negra em uma sala de aula e o que a impunidade dos meus algozes causou em mim. Me lembro de ser repelida pelas professoras desde a educação infantil, de ser colocada por último e, ainda por cima, na fila dos meninos “por ser a mais alta”. Me lembro também do medo constante de, a qualquer momento, ser xingada no meio de uma aula sem que nenhum responsável fizesse algo. Eles nunca fizeram nada.
Hoje não me recordo do nome nem dos rostos dessas educadoras. Mas não esqueço de como elas me fizeram sentir. Desemparada. Eu fechada as pernas com força e fazia de tudo para não levantar os braços com pavor de que meu cheiro incomodasse alguém. “Talvez assim não me chamam mais de fedida”, eu pensava. Meu cabelo era outra preocupação constante. Quando surgi de trancinhas pela primeira vez, no início dos anos 1990, o diretor geral me fez ir na frente da sala, tocou nas pontas do Kanekalon e perguntou por que eu tinha aquilo na cabeça. Tudo o que me ensinaram na escola foi que pessoas negras ocupavam um espaço que não mereciam. Éramos poucos e mesmo assim ocupávamos espaço demais.
Apesar de amar História, essa era a matéria que mais me causava ansiedade. Os corpos de indígenas subjugados e de negros açoitados, com os seios nus como se não tivéssemos vergonha (e tínhamos vergonha) me assombravam. Com tudo isso, caminhar pela escola era um tormento. O intervalo era um problema, assim como entrar e sair da sala parecia aterrorizante. Enfim, tudo que me colocava em evidência exigia de mim uma resiliência que eu não tinha aos nove, dez, doze anos.
Conforme o tempo passou, o racismo mudou de forma. Na universidade o preconceito e a discriminação foram marcados pela ausência de professores negros e pela absoluta falta de menção de raça, classe ou gênero nas discussões acadêmicas. Desde essas primeiras lembranças até o momento presente, sinto que pouco mudou. Nesse ano de 2022, há alguns meses, sofri racismo de novo. Dessa vez em uma sala do mestrado.
Me parece que, na contramão do que eu quero acreditar, o ambiente estudantil acaba sendo propício para ofensas raciais. Imagino que isso se deva, em grande parte, pela ideia de impunidade. “São só alunos”, eles dizem. “Devemos educá-los e não desistir deles”, comentam sobre os agressores. Tudo isso sem nunca transferir o olhar para quem sente diariamente as consequências dessas relações pautadas pela hierarquização, ou seja, pela falsa ideia de que uma pessoa é superior a outra.
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Por isso reivindico junto a coletivos, instituições de ensino e famílias antirracistas, mudanças estruturais como implementação de ações que passam pelo letramento racial para docentes, alunos e famílias, revisão de material pedagógico, canal de denúncia com escuta respeitosa e protocolo de como atuar em caso de racismo, contratação de pessoas negras em cargos de liderança e melhor aplicação da lei 10.639, de incentivo à promoção da cultura africana e afrodiaspórica.
Por fim, mas não menos importante, é preciso garantir o bem-estar das nossas crianças negras em sala de aula. Uma pesquisa realizada em conjunto com Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o órgão do Ministério da Educação e a Unesco, revelou que existe uma desigualdade no desempenho de alunos brancos e negros em decorrência de práticas discriminatórias na escola. Isso se dá muitas vezes pela banalização de atos racistas, reduzidos a “brincadeiras de criança”. A conclusão do estudo é que se faz fundamental instituir novas práticas pedagógicas que contemplem todos os alunos.
Para isso, a meu ver, será preciso reconhecer, entre outras coisas, que não somos todos iguais. Mas isso é conversa para um novo post.
Monique dos Anjos é jornalista, consultora antirracista e escritora de contos eróticos para mulheres. Com 20 anos de experiência na escrita de reportagens sobre o universo feminino, hoje estuda gênero e raça enquanto educa três crianças incríveis que a motivam a reconhecer a felicidade todos os dias e em todas as coisas.