Dicas de Mulher
Falar sobre a solidão da mulher negra é compreender como o racismo influencia as relações afetivas, dando cor ao amor. Esse entendimento é essencial para que não sejamos reféns do sentimento de exclusão e iniciemos a cura que começa pelo autoamor.
Todas as vezes que me pego escrevendo sobre a solidão da mulher negra me pergunto se faz sentido uma mulher como eu, casada há mais de 17 anos, com três crianças e, consequentemente, com uma casa sempre cheia, falar sobre solidão. É aí que me lembro que esse sentimento é tão familiar à minha existência que posso passar anos acompanhada e ainda saberei como descrever a sensação de ser estigmatizada por características que são inerentes a mim.
Porém, alguém de fora é capaz de perguntar se sentimento tem cor. Qual a diferença entre qualquer tipo de solidão e essa que se impregna nas mulheres negras, mesmo quando já não estamos mais efetivamente sós? Para responder à essa questão é preciso compreender tal fenômeno levando em consideração que ele não se refere somente à esfera romântica e sexual, muito embora se ancore nesses pilares. Bell Hooks já descreveu a imagem vendida das mulheres negras como desregradas, boas para o sexo, mas não para o compromisso, como um plano que servia bem à escravatura. Era para justificar os abusos que sofríamos que nossa existência foi resumida a corpos (fogosos) de seres não pensantes.
Mas as mulheres negras não estão sozinhas apenas nos âmbitos afetivos. Sentimos a solidão quando somos as únicas em determinados espaços, quando não conseguimos uma vaga de emprego por causa do cabelo “exótico demais”, quando recebemos propostas para relacionamentos no sigilo, sem encontrar alguém que assuma esse amor em público. Não à toa, o censo do IBGE, lançado em 2010, aponta que mais da metade da população negra feminina no Brasil vive em celibato definitivo. Ou seja, sem interações românticas ou conjugais. É a prova concreta da máxima “o amor tem cor”.
A solidão se perpetua ainda em estatísticas mais tristes como aquelas que explicitam a precariedade no trabalho e comprometimento da qualidade de vida, como já alertava a intelectual Lélia González ao pedir por um feminismo mais negro.
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Me assustou, por exemplo, verificar que, segundo estudo divulgado em 2017, mulheres pretas recebem menos anestesia durante procedimentos obstétricos em comparação com pacientes brancas. Outra informação que dilacera meu coração é saber, segundo estudo do Departamento de Saúde dos Estados Unidos divulgado em 2020, que bebês negros têm mais chance de virem à óbito do que bebês brancos quando cuidados por médicos caucasianos. Como então não se sentir só?
Mas nós, negras, vivenciamos a solidão muito antes até da chegada à vida adulta. Quando somos impedidas por outras crianças de participarmos das brincadeiras, quando não despertamos a candura das professoras e nos tornamos alvo de ofensas até mesmo dentro da sala de aula.
Mulheres negras estão sós nos desenhos de princesas, nas revistas de moda, nas novelas, em séries e filmes em que aparecem rapidamente como simples coadjuvantes, mas nunca aquelas que conquistarão o coração do solteirão incorrigível.
Em um cenário como esses, não é de se surpreender que mesmo aquelas que hoje estão em um relacionamento sigam sentindo-se sozinhas. Isso faz com que encontrar uma parceria que respeite suas subjetividades e enalteça sua beleza pareça um desejo inalcançável.
Estar em contato com essa realidade, sendo lembrada de que o racismo estrutural segue pautando as decisões e os gostos de muitas pessoas, pode soar como se estivéssemos fadadas à uma vida de buscas infindáveis.
Mas é aqui que sua história começa a mudar. Digo isso porque a primeira e mais importante informação que você deve saber é: sua solidão diz muito mais sobre os outros do que sobre você. Ela é resultado não das suas escolhas, daquilo que você pode ou não oferecer ou de quão valiosa você é. Sua solidão é o reflexo de uma sociedade que espera da mulher negra o ato de servir, de ser cuidadora, cuidadosa, mas nunca protagonista e detentora de seus desejos e prazeres.
Por isso eu convido você a mudar essa narrativa distorcida começando pela forma como encara a si. Você está pronta para se amar como quer ser amada pelos outros? Você já parou para perceber como sua pele preta é formidável, como seu cabelo tem uma textura única e seus traços negroides tornam seu rosto uma escultura?
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Precisamos, nós também, reaprendermos a olhar os corpos negros. Nossos corpos negros, em especial. Saber que temos um cheiro incrível, ao contrário do que nos fizeram acreditar é fundamental. Assim como é vital saber que nossa voz é poderosa e nosso pensamento é articulado, culto e vale ser compartilhado.
Enquanto escrevo esse texto, penso na música de Nina Simone “Ain’t got no”, onde ela começa a canção listando o que, enquanto mulher negra, não tem, para terminar em um lindo poema sobre ter um corpo, uma vida, liberdade e muito mais. Temos tudo isso e não serei eu a dizer que você não deveria precisar de outro alguém para ser feliz. Mas considero importante dizer que quem não é feliz sozinha, dificilmente será feliz acompanhada.
Seja a primeira a entregar para você o amor que espera encontrar. Esse ato por si só fará companhia mesmo nos lugares em que a solidão quiser se instaurar. Ah, e lembre-se, você não está só. Se reunir com outras mulheres negras para falar sobre feridas que só uma de nós entende pode ser restaurador, potente e definitivamente é um presente que você merece receber.
Monique dos Anjos é jornalista, consultora antirracista e escritora de contos eróticos para mulheres. Com 20 anos de experiência na escrita de reportagens sobre o universo feminino, hoje estuda gênero e raça enquanto educa três crianças incríveis que a motivam a reconhecer a felicidade todos os dias e em todas as coisas.