Dicas de Mulher
Bem que Drummond avisou: tinha uma pedra no meio do caminho. No caso, não era uma pedra, era uma irregularidade no piso. Apressada, olhando para frente, tropecei e caí no espaço de um comércio super conhecido e frequentado em Maringá, onde resido. Fraturei o braço, fui para o hospital e precisei passar por cirurgia para a colocação de uma placa e vários parafusos. Solicitei e fui indenizada pelos danos, já que a irregularidade não estava sinalizada. Pedi também que o piso fosse consertado, para que outros não se machucassem.
Esse incidente ocorreu poucos meses antes de eu completar 60 anos e, de certa forma, atuou como um divisor de águas, pois as quedas são um dos maiores problemas enfrentados por aqueles que estão na terceira idade. De alguma forma, o tombo inaugurou minha velhice. E como canta Karol Conká: “já que é pra tombar, tombei”.
Quando o meu pai era vivo, já idoso, lembro que ele tinha muita dificuldade de andar e de se levantar de uma cadeira, de um sofá ou de uma cama. Cada vez que presenciava seu esforço, eu pensava: “tenho que me preparar para o envelhecimento de tal modo que eu consiga levantar sozinha de uma cadeira”. É comum acharmos que conosco não ocorrerá, né! E, de fato, comparando com a situação vivida pelo meu pai, estou melhor preparada para essa fase da vida.
Examinando as circunstâncias que me levaram à queda e quais foram as repercussões psicológicas do ocorrido, percebi que o medo de cair novamente, de sair sozinha e de perder a autonomia tomou conta de mim por um bom tempo. Minha autoestima foi abalada e o medo de ficar dependente me abateu. Passado um tempo, relaxei um pouco. Afinal, de alguma maneira tenho feito minha “lição de casa” contra os riscos do envelhecimento. Por exemplo: mudei meu jeito de caminhar e passei a usar calçados mais adequados; tenho cuidado do meu cérebro, dos olhos, da audição, da musculatura, dos ossos e das articulações; faço controle das minhas medicações e procuro manter uma boa alimentação. Mais de uma década de pilates tem ajudado muito na coordenação motora, no equilíbrio e nos reflexos.
Obviamente, meus esforços em seguir os mantras do “sucesso individual de uma velhice com qualidade de vida” colaboram sim, mas não eliminam todos os riscos de ocorrerem problemas, pois nem tudo depende somente de nossas atitudes. O comércio onde caí não fez a parte dele, oferecendo segurança aos frequentadores, e a prefeitura não fiscalizou adequadamente o negócio. Condições adequadas para a frequência de todo tipo de pessoa devem ser ofertadas pelo poder público e pela iniciativa privada. Afinal, a população está envelhecendo mais e, como os demais integrantes da sociedade, os idosos são cidadãos e possuem direitos, incluindo os de mobilidade.
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Já existe um Estatuto que reconhece o idoso “como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais”, porém, nem sempre ele é cumprido. Ou seja, a cidadania não alcança a todos ou nem todos envelhecem igualmente. A velhice é desigual por depender das condições econômicas, do gênero, da etnia, do local de moradia de cada idoso. Além disso, a narrativa do “esforço individual para o sucesso” cola mais facilmente nas classes sociais mais abastadas, que possuem recursos financeiros para acessar a tão desejada qualidade de vida.
Logo depois do meu aniversário de 60 anos, fiz o cartão de estacionamento do idoso para legitimar minha entrada na terceira idade e usufruir de um direito garantido legalmente. No Brasil, a lei estabelece que é “obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar ao idoso a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária”. Como esses direitos são muitas vezes negligenciados, ficou evidente que a minha queda ocorreu não por fatores subjetivos, mas principalmente porque a sociedade não está preparada para acolher a todos – no caso, os idosos. É preciso que todos se sintam incluídos na tão propalada cidadania democrática.
De todo o ocorrido, também extraí outro aprendizado. Meus tropeços, ou a dificuldade de levantar os pés para andar, não estão ligados somente às minhas condições físicas ou à falta de condições adequadas oferecidas pelo poder público e pelo comércio em geral. Acredito que as pernas pesam também quando vemos “tanto horror e iniquidade”. Por exemplo, o recente e violento terremoto que atingiu a Turquia e a Síria pesou sobre mim e sobre minha capacidade de levantar os pés para andar. Ela poderia ser evitada ou pelo menos diminuída pela ação humana. Com certeza, essa tragédia foi maior para os pobres, os periféricos, os refugiados, os párias da sociedade, todos esses são os primeiros a tombar socialmente. A tristeza dessa tragédia não pode nos fazer desistir da necessária luta para fazer valer nossos direitos. Tropeços e quedas podem ocorrer, mas o modo como contamos essas histórias pode estabelecer diferenças e pode apontar mudanças, principalmente na direção da não naturalização dos tombos pessoais e sociais.
Doutora em História, mestra em Educação e graduada em Pedagogia. Professora aposentada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mantém-se na luta cotidiana pela educação de qualidade, democrática e para todos.