Desde muito criança, eu sempre disse para todo mundo que queria ser escritora. Minha mãe me ensinou a ler em casa, aos cinco anos, a partir de contos de fadas e outras histórias infantis, e desde então os livros e as bibliotecas se tornaram parte do meu cotidiano.
Alguns anos depois, uma tia me deu um diário e me disse: “aqui você pode escrever seus segredos e fechar com esse cadeado”. Como eu não sabia bem o que poderia ser secreto aos oito anos, comecei a relatar meu dia a dia e inventar versinhos. Depois, aos dez, decidi que faria um romance contando as histórias dos cachorros que meus avós resgatavam. Minha cachorrinha seria a narradora.
O diário se perdeu e nunca terminei o romance, mas foi assim que comecei a tatear o espaço da escrita, do qual nunca mais saí.
Eu revivi muitas das lembranças dessa minha iniciação quando vi a foto que ilustra esta coluna, batizada de “Um grande dia em São Paulo” e tirada no último dia 12 de junho, no Pacaembu, durante a Feira do Livro de São Paulo.
Inspirada em uma foto de 1958 que retratava 57 grandes jazzistas da época, a (maravilhosa) escritora Giovana Madalosso decidiu reunir escritoras contemporâneas para reproduzir aquele momento histórico, como uma forma de mostrar a presença crescente de mulheres no mercado literário. Sim, nós existimos.
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Logo diversas cidades aderiram e, além das mais de 400 escritoras reunidas para a foto de São Paulo, centenas de mulheres se reuniram para fazerem o mesmo registro em outras cidades pelo Brasil (e fora dele). Apesar de não ter conseguido ir para São Paulo para participar da foto, nem reunir as escritoras de Maringá (onde vivo) para uma foto local, meu coração estava todinho vibrando com essas mulheres, irmãs, que fizeram parte desse momento.
No meu texto anterior, falei sobre a importância que dou para as palavras. Pois bem: toda vez que uma mulher assume para si a palavra escritora, uma pequena revolução acontece. Uma supernova se inaugura em algum canto do universo. Ainda que nada se mova, tudo sai do lugar em que estava e o ar passa a vibrar de forma diferente.
Sei disso porque sinto o quanto “assumir-me” foi revolucionário para mim. Apesar de viver a escrita desde muito pequena, esse batismo simbólico inaugura uma etapa nova – inclusive em relação à responsabilidade que temos com os textos que escrevemos. Estou inteira em cada linha e escolha de palavra. Como sempre digo, a literatura é minha religião, então, eu me devoto e celebro.
O que senti vendo essa foto, porém, vai além de uma questão pessoal. Até há bem pouco tempo, a entrada das mulheres no mundo da literatura era muito mais difícil. Basta listarmos os nomes dos grandes autores clássicos – homens, em sua maioria. Entre eles, uma ou outra mulher, geralmente “resgatada” do apagamento por estudiosas feministas.
Chegando ao século XX, já temos, no recorte que faço a partir do Brasil, nomes mais conhecidos e estudados, como minhas amadas Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles, além de Hilda Hilst, Maria Carolina de Jesus, Ana Cristina César… São, porém, poucas, quando observamos comparativamente a quantidade de homens da mesma época alardeados e estudados em escolas e cursos superiores.
Estamos bem mais presentes hoje, publicando nossos livros de forma tradicional ou independente e atuando no campo da literatura oral, como no caso das mulheres que atuam em slams de poesia. Ganhamos espaço nas redes sociais, nos eventos literários, nas livrarias e, por fim, também nas estantes e corações dos leitores – onde toda pessoa que escreve quer morar. Considerando toda a trajetória das mulheres na literatura, acho que estamos no melhor momento para ser uma escritora no Brasil.
Mas ainda há muito caminho pela frente.
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Apesar de muita coisa já ter mudado, muitos obstáculos ainda persistem. Alguns deles nós compartilhamos com os homens: baixa proporção de população leitora no Brasil, crise econômica, dificuldade de conciliar a escrita literária com empregos de 40 horas semanais… Mas, além disso, ser uma escritora em uma sociedade em que ainda existe grande disparidade de gênero nos coloca alguns impedimentos a mais.
Para mim, é justamente por esse cenário que a foto de domingo foi importante. Ela nos fortalece, cria laços e conexões. Ela reafirma nossa existência. Ao lado de projetos como o clube de leitura Leia Mulheres, iniciado em 2015, e o coletivo literário feminista Mulherio das Letras, surgido em 2017, a proposta de reunir escritoras para um registro histórico também dá visibilidade às mulheres que fazem parte da cadeia criativa e produtiva do livro, além de criar mais referências para as novas gerações de escritoras que virão.
Em imagens dos “bastidores” dessa foto, Giovana Madalosso aparece em êxtase, orquestrando mais de 400 mulheres com um megafone e toda sua potência de vida. É uma imagem arrebatadora. Ela reafirma para mim o quanto precisamos assumir a transformação como um projeto pessoal de cada uma de nós. O lema “escritoras do Brasil, uni-vos” deve estar em nosso pensamento e ação, sempre. Só assim faremos essa grande roda girar.
Abrir espaço na estante para escritoras deve partir de cada leitora (e leitor também, de preferência, mas foquemos em nós aqui). Divulgar e apoiar o trabalho de mulheres deve partir de nós. Precisamos valorizar mulheres como editoras de nossos trabalhos, como revisoras, ilustradoras, capistas, etc. Apoiar jovens escritoras, trocar, indicar.
Isso, além de tudo, é recompensador. Quando dei aula no curso de Letras da Universidade Estadual de Maringá como professora temporária, entre 2015 e 2016, coordenei uma oficina independente de escrita. Hoje, algumas das mulheres que passaram por ali seguem escrevendo, uma delas vai publicar o primeiro livro em breve. Fico feliz e orgulhosa como se fossem minhas filhas. Ver uma mulher encontrar a própria voz e saber que, em alguma medida, eu também ajudei nessa realização é uma coisa que sempre me põe em lágrimas.
Escritoras do Brasil, leitoras e mulheres do campo do livro em geral, sigamos unidas. Que esse grande momento sirva para nos dar força e coragem para destinos ainda maiores, e que esse registro sirva para nos lembrar sempre que, juntas, nós podemos realizar tudo o que desejarmos.
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Edit: Como estamos falando de atuação coletiva, vale mencionar que a iniciativa da foto contou com apoio da também escritora Natália Timerman, da editora Paula Carvalho (Revista Quatro Cinco Um), das ativistas Jéssica Balbino e Tatiana Nascimento e de muitas outras pessoas, em São Paulo e em outras cidades, que assumiram a proposta pra si e a fizeram acontecer lindamente.
Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três. Escrevo a newsletter Versilibrista.