Dicas de Mulher
Basta fazer uma pesquisa rápida nas redes sociais para encontrar milhares de receitas para ser feliz – e, dentre elas, a que mais se destaca com certeza é a receitinha da autoestima. Nela, coaches, influencers e pessoas que mal conhecemos afirmam com destreza: “você precisa se amar!”. Como se fosse bem simples assim.
Na desesperada busca pelo amor-próprio, repetem-se os mantras sagrados para uma vida bem-sucedida, frases que reiteram o poder feminino e a necessidade de ser melhor sempre. Porém, quando algo afeta essa delicada autoestima construída sem muita reflexão, é comum pausar diante do espelho e perceber que não há frase motivacional que resolva a angústia de não ser o reflexo da perfeição.
O fato é que, dentro da imperfeição humana, há dias piores e melhores. E há também angústia, vergonha, medo do abandono. Quando isso acontece, não adianta gritar aos quatro ventos “sou linda!”, “posso tudo!”, “nada me abala!”, porque a verdade é que às vezes não é possível ser assim. O que nos cabe é avaliar o melhor que se pode ser dentro das condições que a vida impõe. Autoestima, nesse contexto, não é fazer das palavras de autoafirmação um comando para o corpo; mas, sim, olhar o corpo a partir das suas necessidades, deixando as palavras de amor-próprio saírem sem pressão.
Outro fato ignorado pelos discursos prontos da autoestima feminina é que o outro é, sim, parte constituinte da nossa personalidade. É fácil dizer que não se deve importar com o que o outro pensa ou como o outro nos vê, mas, na prática, será que isso é sempre possível?
A psicóloga Beatriz Veiga Silva de Sá explica que, para a psicanálise, nossa imagem é constituída através do outro, ou seja, é por meio das relações construídas desde o nascimento que constituímos aquilo que entendemos como o “eu”. Portanto, explica a psicóloga, “a autoestima não nasce conosco, ela só se torna possível através de relações saudáveis e nutridoras do próprio psiquismo”. Beatriz ainda mostra que, na psicanálise de Freud, a autoestima expressa tudo o que o sujeito possui ou realiza e que o ajuda a aumentar esse amor por si mesmo, e isso envolve o amor que recebemos do outro e que direcionamos ao outro.
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Compreendendo melhor o que faz uma mulher ter baixa autoestima
O estudo What Women Want, da Kantar, aplicado em cinco países da América Latina, demonstrou que apenas 25% das mulheres entrevistadas se sentem confortáveis e livres para decidir sobre seu corpo e sua sexualidade. Isso quer dizer que 75% delas ainda não se sentem autônomas para viver bem. A autonomia está diretamente ligada à autoestima, pois é por meio da independência que as mulheres podem ser o que quiserem, com certo desprendimento das exigências midiáticas e culturais.
Um exemplo de autonomia e inteligência emocional quando o assunto é autoimagem é a atriz e produtora Aline Luppi Grossi, de 29 anos. Por quase dez anos ela atuou como performer em espetáculos que colocavam em cena o corpo gordo, como “Me chama de gorda” (2019) e “Banquete de obscenidades” (2020). Com medo de parecer arrogante, Aline destaca que, sim, gosta da imagem que vê no espelho. Para ela, a autoestima é uma coisa transitória que está ligada diretamente à percepção de tempo. “O que eu penso e percebo sobre o meu corpo mudou inúmeras vezes”, comenta ela. Quando falamos sobre a imagem do espelho, a atriz conta sobre um exercício de autoestima que vai muito além de receitas prontas. Ela desenvolveu o hábito se olhar nos olhos por um tempo, sem desviar ou julgar as emoções que surgem. “Tenho parado em frente ao espelho de corpo inteiro e observado as mudanças desse corpo beirando os 30. Tenho lidado com a imagem dessa mulher adulta que chegou até aqui com suas certezas e descobertas e que ao mesmo tempo joga tudo pra cima e muda completamente o caminho”, explica ela.
Esse movimento adotado por Aline vai contra a prática exaustiva de muitas mulheres que olham para o espelho buscando primeiro os “defeitos” – por “defeitos” entendemos aqui tudo o que foge do padrão estético ditado socialmente: rugas, dobras, estrias, gordura localizada, manchas, pelos… Nesse movimento, o corpo vai se tornando sempre algo a ser moldado, que ainda não existe.
A psicóloga Beatriz explica que, historicamente, as mulheres sofrem, desde muito jovens, cobranças familiares e sociais em relação aos seus corpos e comportamentos, favorecendo uma maior insatisfação corporal. “Apesar de existir uma luta feminista, o patriarcado ainda reina em nossas relações e, portanto, na forma como enxergamos nossos corpos e nossas vivências”, elucida a especialista. Para ela, a autoestima feminina é favorecida por aspectos sociais, culturais e por experiências individuais. Beatriz conclui: “Mulheres ainda lutam por salários igualitários, autonomia sobre seus corpos, quebra de padrões estéticos, liberdade de escolha… Todos esses fatores colaboram para os problemas na autoestima feminina”.
O caminho que Aline Luppi escolheu é mais árduo e parte da premissa de um olhar de dentro para fora, que considera, sim, um outro – mas não se define por ele. E essa construção não vem de hoje. Desde sempre, Aline encarou os corpos para além do que diziam que eles deveriam (ou não deveriam) ser. “Sempre fui apaixonada por corpos, pele, textura, dobras e curvas, volumes e marcas”, conta a atriz. Ela também complementa sua percepção sobre o olhar julgador das pessoas: “É até confuso explicar, porque era o inverso, a questão era justamente não entender porque meu corpo gordo incomodava tanto as pessoas se eu achava ele tão lindo”, conclui Aline.
Estar em paz com nossos corpos nos faz gozar (em todos os sentidos!)
É muito perceptível que o fato de estar à vontade com o próprio corpo faz de Aline Luppi uma mulher radiante. Sorridente, confiante, ela demonstra gentileza consigo mesma e com o corpo de outras mulheres, compreendendo as diversidades do existir. Para a atriz, há inúmeras formas de sentir prazer: “comer uma comida gostosa sem pensar em nada além da explosão de sabores nas papilas gustativas; sentir a brisa pela janela do carro numa viagem não planejada no fim de semana com as amigas; sair para dançar descoordenadamente a noite inteira e terminar com o cabelo encharcado como se tivesse saído do banho…. Tudo isso contribui para o prazer sexual também!”.
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Muito do que entendemos por prazer erótico está ligado àquilo que nos disseram que daria prazer (os filmes, os livros, os amigos, a sociedade no geral), e isso precisa ser revisto, recriado, porque quando o assunto é sexo, o gozar é algo muito mais íntimo e pessoal. Muitas pessoas não sentem prazer com o que os filmes pornôs mostram como “bom” ou “gostoso”, e por isso se sentem inseguras diante das próprias fantasias. Isso tem muito a ver com o corpo e com a autoestima. Mulheres representadas em cenas de amor romântico ou de sexualidade em filmes, novelas e séries são, quase sempre, mulheres de corpos padrões, dificilmente atingíveis. Isso leva a crer que somente aquele corpo que está ali retratado na cena é digno de sentir tesão.
Aline exemplifica como a autoestima da mulher costuma ser retratada na sociedade: “Geralmente ouvimos falar que mulheres bem resolvidas sabem dizer ao seu parceiro ou parceira o que quer e gosta. Sabem! Mas não é sobre o outro, é sobre se olhar e tocar com carinho, entender se gosta ou não gosta, do que gosta […], porém isso só se descobre com tentativa e erro, por isso se conhecer ajuda a se permitir e a impor limites durante essas tentativas”. Aqui, voltamos ao que foi exposto no início desta matéria: os discursos sobre autoestima feminina estão sempre voltados a um conhecimento que antecede a experiência da tentativa e do erro. Supervaloriza-se um corpo pronto, acabado, que não se transforma com o tempo e, de antemão, se ama sem viver experiências de prazer.
Viver experiências de prazer implica que não sejamos rígidas conosco o tempo todo
O corpo está em constante transformação. Na adolescência, os caracteres sexuais aparecem – seios, pelos, ciclos… – e, na vida adulta, o tempo faz marcas que contam uma história. Também se cogitam, muitas vezes, intervenções estéticas que podem nos aproximar da imagem ideal criada por nós mesmas e por tudo o que nos ronda. Toda a tecnologia médica está a serviço de transformações que, com responsabilidade, podem alterar formas físicas, interferindo também no conforto ao se olhar no espelho. A psicóloga Beatriz demonstra que, na psicologia, quando falamos em intervenções estéticas e cirúrgicas para o exercício da autoestima, falamos também sobre como me apresento ao outro para ser aceito, amado e correspondido.
Essas mudanças são saudáveis dentro de uma compreensão dos motivos por trás delas. Motivos que levam a lipoaspirar, motivos que levam a aplicar determinada substância, motivos que levam a implantar próteses… As intervenções para mudar a forma física são uma decisão muito pessoal. Conforme aponta Aline Luppi, “a grande questão é acharmos que temos algum direito de opinar, apontar ou determinar qualquer coisa no corpo do outro. Muitos universos permeiam uma decisão de se submeter a esses tratamentos e procedimentos, cabe unicamente ao indivíduo decidir suas ações”. A atriz e produtora também pondera que não se pode olhar para os procedimentos estéticos e condená-los, pois muitas vezes eles melhoram infinitamente a qualidade de vida das pessoas.
Na sexualidade, não é diferente. Um corpo potente para amar não necessariamente é um corpo magro, ou jovem, ou atlético. Um corpo potente para amar é aquele que, confortavelmente, reconhece seus limites e possibilidades de expansão. Na tomada de decisão sobre interferir nas formas do corpo, uma das perguntas que podemos nos fazer é: “Se eu mudasse meu corpo, poderia me sentir mais confortável para gozar na vida e na cama?”. Se a resposta for “sim”, é sinal de que uma intervenção estética pode ser um elemento auxiliar no desenvolvimento pessoal e nas descobertas que estão por vir – descobertas que são pessoais e dependem da coragem de cada uma.
Evitar a rigidez talvez seja a grande chave para a autoestima, seja na cama, seja na vida. Não ser rígida consigo mesma, compreender as próprias limitações, recorrer a procedimentos se for do próprio desejo, compreender a transitoriedade da vida… tudo isso nos torna mais humanas diante do espelho. É nele que olhamos, assim como Aline, no fundo dos nossos olhos, compreendemos nossa alma e podemos mudar a forma como exigimos tanto de nós mesmas. O amor (e o amor-próprio) não pode(m) ser uma imposição, mas uma construção que leva tempo, vivência, plasticidade, quedas, perdas e ganhos. O modo como nos vemos afeta diretamente nosso prazer, então, que tal nos olharmos com mais carinho?!
Fernanda Cassim
Psicanalista e Palestrante, graduada em Psicologia e em Letras, com Mestrado e Doutorado em Linguística e Pós-Graduada em Sexualidade Humana. Dedica sua carreira ao desenvolvimento de mulheres líderes no trabalho, nos relacionamentos e na vida. É autora do livro "A linguagem da loucura" e empresária, ama comunicação, esportes, viagens e celebrações.