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Cultura do estupro: entenda que a vítima nunca tem culpa

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Atualizado em 26.04.23
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Ninguém ensina um menino a ser um estuprador, mas o ensina a se sentir superior às meninas, e ensina à menina a se sentir inferior. Segundo a advogada Leticia Lessa, mestranda em Direito pela Universidade Federal do Paraná com pesquisa em violência doméstica e ex integrante do Núcleo Maria da Penha da Universidade Estadual de Maringá (NUMAPE-UEM), há, nesse sentido, pesquisas que indicam que meninas de 6 anos já não se consideram inteligentes e desistem de atividades.

Ainda que pareçam sutis, atos diários contribuem para esse sentimento de superioridade dos meninos e, finalmente, para a prática do estupro. A cultura do estupro começa em casa, quando certos comportamentos masculinos são tidos como naturais e as meninas são repreendidas por atos de violência sofridos. Entenda mais a seguir.

O que é a cultura do estupro

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A cultura do estupro existe porque estamos em um contexto de profunda desigualdade de gênero. Ou seja, a desumanização e a objetificação da mulher começam desde cedo. Nesse sentido, inúmeros comentários servem para reforçar ainda mais essa cultura, embora sejam considerados por muitos como piadas.

Lessa indica ainda que, em uma pesquisa realizada em 2013, foi constatado que mais mulheres entrevistadas declaravam ter sofrido situações de violência do que homens entrevistados reconheciam ter cometido. Por exemplo, enquanto 25 mulheres relataram terem sido xingadas ou agredidas por terem rejeitado alguma investida masculina, somente 5 homens admitiram ter cometido tal investida. Ou seja, para o homem, agir de forma superior e agressiva em relação à mulher é muitas vezes tão naturalizado que ele sequer percebe isso como uma violência.

O que consumimos na televisão também colabora muito para a construção da cultura do estupro. Muitos programas e propagandas colocam as mulheres como objeto de desejo ou em uma posição de submissão, como a figura que é feita para cuidar da casa e dos filhos e, geralmente, está em uma posição inferior à dos homens. Nesse sentido, a mesma advogada consultada lembra de uma pesquisa do Instituto Patrícia Galvão, realizada em 2013, que revelou que 65% das mulheres brasileiras não se veem nas propagandas veiculadas na televisão, e que para 35% delas a mulher nunca é apresentada como uma pessoa inteligente.

Enquanto as meninas estão crescendo, os pais censuram suas roupas e corpos, mesmo que a censura seja disfarçada de cuidado e preocupação. Em relação aos meninos, esse zelo é muito menor. Esses são alguns exemplos de como práticas cotidianas ajudam a formalizar a cultura do estupro, porque reforçam a ideia de que os homens podem muito mais coisas do que as mulheres. A sensação de superioridade os leva a crer que, por poderem mais, podem também desconsiderar o consentimento delas – não perguntam, não esperam e/ou não aceitam o “não”. E é essa cultura que o feminismo combate.

Por que falar sobre a cultura do estupro

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A necessidade de se falar sobre a cultura do estupro se revela principalmente quando se observa um dado como o trazido pela pesquisa do Instituto Avon/Data Popular, segundo a qual, espontaneamente, apenas 10% das mulheres entrevistadas relataram ter sofrido violência no ambiente universitário, mas quando foram estimuladas com uma lista de situações de violência, essa porcentagem aumentou para 67%. Da mesma forma com os homens: apenas 2% admitiram espontaneamente a prática de algum ato de violência. No entanto, com o estímulo da lista, esse número saltou para 38%.

Além disso, quando, em uma sociedade, a violência sexual é frequentemente considerada culpa da vítima, é porque existe uma cultura do estupro. E os detalhes do dia a dia reforçam ainda mais esse hábito: muitos comportamentos e características da vítima são usados como justificativas para a violência sofrida. É como se a mulher não tivesse o direito sobre o próprio corpo e suas vontades.

Quando duvidamos da vítima e relativizamos a violência por conta de seu passado ou de suas práticas sexuais, estamos reforçando a cultura do estupro. Nessa cultura, é mais aceitável acreditar em uma suposta malícia natural das mulheres do que reconhecer que homens cometem estupros. É justamente por isso que o machismo é que mantém a cultura do estupro, e falar sobre o assunto é o primeiro passo para desconstruir essa prática.

6 fatos para entender melhor a cultura do estupro

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Uma série de mitos sobre o estupro e a cultura que o perpetua são disseminados diariamente. Confira os fatos abaixo para entender melhor:

1. Meninas são o sexo frágil

Espera-se que a mulher seja delicada, comportada e zele pelo bem-estar do homem, que é, supostamente, mais forte e corajoso. Como lembra Evelin Cavalini, conselheira nacional dos direitos da mulher no ministério da mulher, família e direitos humanos e co-fundadora da associação Nenhuma a Menos, essas diferenças não são biológicas, mas construídas socialmente, e estabelecem uma relação de superioridade de um gênero sobre o outro. É daí que vem a ideia de que homem não pode chorar e de que as mulheres devem ser responsáveis por tudo – inclusive pelas violências que possam sofrer.

2. A cultura do estupro é disseminada pela mídia

Na TV, na música e na publicidade, as mulheres são exploradas e apresentadas como se fossem uma “coisa” e não um ser humano. Embora isso possa parecer inofensivo, faz com que muitos homens, desde cedo, entendam que o corpo feminino não tem valor e que existe apenas para servi-los – ou seja, passam a agredir, mutilar, estuprar e assassinar mulheres a partir desse ideal. Sobre esse assunto, Cavalini indica o livro “A dominação masculina˜, do filósofo francês Pierre Bourdieu, que explica de que forma a sociedade “autoriza” os homens a sentirem que tem propriedade sobre os corpos femininos.

3. Cultura do estupro não tem nada a ver com amor

Enviar ou compartilhar vídeos que difamam conhecidas ou desconhecidas, desqualificar mulheres simplesmente por causa do gênero, romantizar ciúme, consumir pornografia e sexualizar crianças são práticas que colaboram para a cultura do estupro. Aquela ideia de que o coleguinha da escola bateu na amiguinha porque gosta dela é um exemplo disso, e ensina que o amor pode ser medido com a dor.

Além disso, Cavalini lembra que somente em 2005 foi banido do código penal a possibilidade de o estuprador não ser punido caso se casasse com a vítima, e ainda hoje se debate o estupro marital (embora, por lei, seja crime). A sociedade ainda entende que a mulher casada tem “deveres conjugais” e que a vontade do marido se sobrepõe à vontade da mulher. Exemplos como esses desnudam como a cultura do estupro está enraizada na sociedade.

4. O estuprador pode ser alguém bem próximo

Estupradores nem sempre são desconhecidos. Na verdade, de acordo com a escrivã da Polícia Civil Paula Apoloni, fundadora do projeto Patrulha do Batom, em cerca de 80% dos casos, o estuprador é um conhecido, como pai, padrasto, tio, avô ou vizinho, entre outros.

O estupro acontece em todos os lugares e ocorre sempre que a mulher não consente com o ato sexual – mesmo que seja com o marido ou namorado. Por isso, como lembra a advogada Leticia Lessa, é importante não só ensinar desde cedo às meninas que ninguém tem o direito de tocar no corpo delas sem consentimento, mas também os meninos a ouvirem e aceitarem o “não”, mesmo que ele seja sem palavras. Ou seja, o consentimento é premissa para qualquer contato sexual. O que deve ser deduzido é sempre o não e nunca o sim.

5. Nada justifica o estupro

Independente da roupa, aparência, comportamento ou grau alcoólico, nada justifica a violência contra a mulher. Até mesmo durante um ato sexual, ela tem direito a dizer não e querer parar por ali. Colocar essas questões em evidência é uma característica da cultura do estupro, que se preocupa mais em apontar “defeitos” no comportamento da vítima do que se preocupar com o estuprador.

Nesse sentido, Evelin Cavalini lembra que um caso que teve repercussão mundial foi o da estudante canadense estuprada dentro do campus de uma universidade que, ao procurar ajuda de um guarda, ouviu dele que ela ela teria sido violentada pois se vestia “como uma vadia”. Essa é a origem das manifestações intituladas “marcha das vadias”, que questionavam a cultura do estupro e lutavam pelo direito da mulher de estar onde, como e quando quiser sem ser violentada.

6. Quem cala não consente

A ideia de que a mulher “bebeu porque quis e sabia o risco que corria” é um pensamento recorrente a muitos homens que cometem violência sexual, mas não se enxergam como estupradores. É importante reforçar que, se a mulher não estiver em plena capacidade de concordar com o ato sexual, é estupro.

É muito importante que tenhamos esses pontos sempre em mente. Isso evita a reprodução de discursos que perpetuam a cultura do estupro e nos torna mais conscientes de nossos direitos no dia a dia.

A cultura do estupro no Brasil

O medo das mulheres de sofrerem uma violência sexual é enorme. Sobre essa questão, a advogada e pesquisadora Leticia Lessa menciona a pesquisa Índice de Democracia Local, do Instituto Sivis, realizada na cidade de Curitiba, no Paraná, em que 73% das mulheres entrevistadas afirmaram sentirem medo de sair a rua sozinha, especialmente à noite. Além disso, 23,47% das mulheres descartam a possibilidade de andarem sozinha, enquanto que apenas 11,47% dos homens o fazem.

Segundo outra pesquisa, realizada pelo Datafolha, em 2016, 33% da população acredita que a vítima é culpada em um caso de estupro. Estamos falando de um a cada três brasileiros.

Entre os homens, o pensamento é ainda mais comum: 42% deles dizem que “mulheres que se comportam direito não são estupradas”. Esse dado comprova que a cultura do estupro tem raízes sociais bastante profundas e precisa ser discutida, para aprendermos a combatê-la.

A conselheira Evelin Cavalini lembra que a campanha “Chega de Fiu Fiu”, lançada em 2013, pela Think Olga e a página Feministas antipedofilia são exemplos de movimentos do seculo XXI em enfrentamento a cultura do estupro. A primeira luta contra o assédio sexual em locais públicos e a segunda contra a pornografia que objetifica mulheres e alicia meninas. Cavalini reforça ainfa que todos e todas devemos estar atentos e vigilantes para combater a cultura do estupro e o mal que ela representa para nossa sociedade.

Vídeos para refletir um pouco mais

Separamos alguns vídeos que ajudam a complementar a visão sobre a cultura do estupro e como homens e mulheres podem combatê-la. Confira:

Entenda a cultura do estupro em poucos minutos

Quantas mulheres que você conhece já foram assediadas na rua? Você acha que isso não tem nada a ver com a violência sexual, pois é só uma cantada? Aí é que você se engana: estamos falando de uma prática que faz parte da cultura do estupro. Esse vídeo vai te ajudar a entender.

Redes sociais disseminam a cultura do estupro

Nesse vídeo da Jout Jout, ela comenta um episódio ocorrido com uma menina de 12 anos que participou de um programa de TV. Isso também faz parte da cultura do estupro e você vai entender porque dando play no vídeo.

Origens da cultura do estupro no Brasil

Nesse vídeo, a pesquisadora Djamila Ribeiro comenta a origem da cultura do estupro no Brasil, que remonta à época em que os senhores de escravos iam até a senzala para violentar as mulheres.

Chá e consentimento

Se você já se sentiu na posição de achar que “só desenhando” para certas pessoas entenderem como funciona a questão do consentimento, talvez este vídeo ajude. Ele é extremamente didático e utiliza a metáfora do chá para falar sobre consentimento em relações sexuais (mas não só).

Outras pesquisas e dados sobre o assunto

Há muitas pesquisas e iniciativas levantando dados e tentando conscientizar a sociedade em relação à cultura do estupro. Algumas delas são:

A cultura do estupro está diretamente ligada à maneira como a sociedade educa meninos e meninas e, portanto, é fundamental que a desconstrução dessas identidades de gênero sejam feitas. Para entender melhor sobre como o machismo silencia e pode aparecer de maneira bastante sutil, aprenda a reconhecer o sexismo. Vamos ficar atentas a todos os sinais!

Dos assuntos cotidianos, como moda, beleza e saúde, às causas feministas, estamos juntas em todas as buscas da sua jornada!