Jornalista e pesquisadora conta sua trajetória profissional, desafios e conquistas em prol de um futuro mais igualitário
Basta entrar em uma loja de brinquedos para perceber o quanto os estímulos de desenvolvimento são diferentes para meninos e meninas. Enquanto as famílias costumam presentear os garotos com carrinhos, bolas, caminhões e super-heróis, os brinquedos das meninas tendem a ser miniatura de bebês, casas, objetos de cozinha e bonecas com acessórios de moda e beleza.
Foi por ter um olhar apurado e se incomodar com estes e outros costumes que a jornalista Déborah De Mari decidiu pesquisar como a educação aplicada a jovens meninas impacta nas diferentes fases de sua vida – e descobriu que, em comparação com os garotos, elas têm mais problemas de autoestima e autoconfiança. Desta percepção, surgiu o “Força Meninas”, um empreendimento social que visa estimular a liderança feminina e combater a desigualdade de gênero desde a infância.
Através do projeto, criado em 2016, Déborah alcançou reconhecimento: além de fechar parcerias com grandes empresas, como Uber e Banco Original, ela venceu o Prêmio de Direitos Humanos da Embaixada do Canadá em 2021. No mesmo ano, foi eleita como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em políticas de gênero pela organização britânica Apolitical.
Sua trajetória, no entanto, não foi fácil: antes de empreender, ocupou cargos de chefia em grandes empresas e, insatisfeita com os rumos da vida pessoal e profissional, precisou fazer uma mudança de carreira. A seguir, Déborah relembra seus principais desafios e conquistas – e dá dicas para as mulheres que estão ingressando no mercado de trabalho ou que, como ela, buscam uma mudança na vida profissional.
Dúvidas sobre o curso e escolha da instituição de ensino
Déborah recorda que foi uma criança curiosa – e que este traço de personalidade se manteve ao longo dos anos. “Eu gostava de pesquisar sobre as coisas. Meu campo de interesse era amplo e por isso tive dificuldade em decidir qual curso fazer. Hoje, acredito que os incentivos da família e da escola me levaram ao jornalismo. As pessoas elogiavam minhas habilidades de me comunicar, seja falando ou escrevendo”, detalha.
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Após decidir qual curso faria, ela pesquisou sobre as instituições de ensino disponíveis. “Eu morava em Guarulhos [município da Grande São Paulo] e meus pais não tinham condições de bancar que eu estudasse fora. Então foquei nas opções de São Paulo. Tentei a ECA [Escola de Comunicações e Artes, da USP], mas além de não passar na segunda fase, ouvia notícias sobre os professores entrarem em greve, e tinha receio de passar muito tempo sem aulas”, recorda.
Entre as opções particulares viáveis, restaram as faculdades Cásper Líbero e Metodista. “Pesquisando, entendi que a Cásper tinha um curso mais teórico, enquanto a Metodista tinha uma grade curricular mais prática. Isso combina bem com o meu perfil, que é mais ‘mão na massa’. Então, mesmo sendo longe da minha casa, já que o campus fica em São Bernardo do Campo, decidi ir para lá e pegar três conduções por dia”, conta.
Remuneração baixa e vagas escassas: desafios do início de carreira
O primeiro emprego de Déborah na área da comunicação foi um estágio em um portal de notícias sobre a região de Guarulhos. “A remuneração não custeava sequer o que eu gastava de transporte. Eu acompanhava matérias na Câmara dos Vereadores, escrevia, tinha a rotina de um repórter. Foi interessante como aprendizado, mas sentia que o trabalho era desvalorizado. Por causa disso, acabei saindo”, relembra.
Assim, passou o último ano focada somente na conclusão de curso. “Depois de formada, precisava começar a trabalhar. Se não encontrasse nada na área, estava decidida a ir para qualquer outra”, recorda. Apesar de se inscrever para processos seletivos voltados para recém-formados em jornalismo, como os da Folha de S.Paulo e do Estadão, não foi admitida. “Foi um início de muita frustração. Eram poucas vagas e a qualificação para preenchê-las era alta. Eu tinha muitos sonhos, mas não estava preparada para alcançar nenhum deles”, reflete.
Diante deste cenário, iniciou a vida corporativa: conseguiu uma vaga na empresa de cerâmicas Gail, na comunicação interna. Depois, foi promovida para a equipe de marketing e agrupou as duas funções. Sua próxima experiência foi na LocaWeb — uma empresa de tecnologia. Lá, passou pela assessoria de imprensa e pelas redes sociais. Em 2009, conquistou uma vaga na Natura, empresa que considera divisora de águas na sua carreira.
“Naquela época, a marca já falava sobre sustentabilidade, Amazônia, povos originários. Emergi em um ambiente muito bom de pesquisa e fui trabalhar com internet, como gerente de comunidade e, mais tarde, como estrategista de mídias sociais. Na vida pessoal, dei um salto: saí da casa dos meus pais, fui morar sozinha. Conquistei a independência financeira. Não por acaso, fiquei lá por quase cinco anos”, conta.
Ascenção à chefia e transição de carreira
Em 2015, Déborah ocupou o cargo de gerente de marca no e-commerce da rede Walmart. “Foi uma startup que fez uma operação teste no Brasil, separada do varejo. Eu atuava fazendo a gestão de uma equipe grande, além de ser responsável por todo branding, desde as propagandas de TV, até o conteúdo digital. Essa experiência me deu velocidade: muitas vezes criávamos ações para tentar reverter resultados de venda no mesmo dia”, recorda.
Tantas responsabilidades exigiam muito do seu tempo. “Eu só trabalhava. Acabei ficando exausta do ambiente corporativo. Comecei a ter questões de saúde, vivia eternamente ansiosa, me sentia mal. Além disso, na vida pessoal, as coisas não iam tão bem. Já tinha quase 35 anos e não tinha filhos – não por falta de vontade, mas por postergar essa decisão em prol da carreira. Não conseguia me imaginar sendo mãe seguindo a rotina que eu tinha”, analisa.
O estopim chegou quando seu marido foi transferido para trabalhar na Irlanda. “Se eu o acompanhasse, não poderia trabalhar no país durante dois anos, por causa da legislação local. Diante dessa decisão difícil, fui fazer terapia. Durante as sessões, percebi que mesmo estando no que considerava o auge da carreira, eu não via mais sentido no que fazia. Não me sentia estimulada, nem aprendia mais”, afirma. Assim, decidiu usar suas economias, fazer o pedido de demissão e se mudar.
Jornada como empreendedora social
Chegando ao novo país, Déborah usou o tempo que tinha para estudar. “Sempre fui conectada às questões de gênero e tive um olhar crítico sobre esse assunto. Sei que as diferenças podem se manifestar de formas bastante sutis. Naquela fase, por exemplo, sentia receio de engravidar por causa do trabalho — mas normalmente um homem ocupando a mesma posição não teria as mesmas questões se pensasse em ter um filho”, conta.
Além disso, Déborah havia acumulado outras experiências desagradáveis no passado. “Logo no início da carreira, tive que ter uma postura séria, para conquistar o respeito dos homens que trabalhavam comigo. Às vezes recebia mensagens contendo ‘elogios’, que na verdade eram assédio”, recorda. E, conforme se desenvolveu na carreira, chegou a ser mal interpretada. “Eu queria crescer profissionalmente, superar as metas e fui ficando cada vez mais durona. Se fosse um homem com a mesma postura, ele seria considerado ‘o cara’ do escritório. Mas, como não era, fui tida como agressiva”, afirma.
“Quanto mais estudava sobre o assunto, mais me convencia de que essa mudança de pensamento e de que o olhar para as questões femininas precisava começar cedo, ainda na infância”, conta. Por isso, conversou com psicólogas e educadoras para saber como poderia estimular crianças e adolescentes a serem mais confiantes – e desenhou um projeto, que nomeou de “Força Meninas”. Seu primeiro passo foi criar uma página no Facebook para dividir com seguidores o material de pesquisa.
Depois, participou de um curso de capacitação nos EUA, a fim de transformar o que antes eram apenas ideias em ações. “Fui conceituando plataformas, testando workshops e fazendo pesquisas qualitativas com mães de meninas. Até que a Uber se interessou pelo projeto e nos procurou para desenvolvermos uma ação grande, envolvendo diferentes estados do Brasil. A ideia era promover treinamentos presenciais para motoristas do aplicativo e atividades para suas filhas”, recorda.
Assim, o “Força Meninas” se tornou um negócio e Déborah passou a exercer a função de empreendedora social, elaborando ações em diferentes frentes, com intuito de transformar meninas em protagonistas de seu futuro, desenvolvendo habilidades para ciência e tecnologia, por exemplo.
Aprendizados e conquistas
Como fundadora da empresa, ela considera que sua maior conquista foi o número de meninas que conseguiu impactar: 43 mil crianças e adolescentes do gênero feminino a partir dos seis anos já tiveram contato com o projeto. “Apesar de ainda termos muito trabalho a ser feito, já marcamos presença em 13 estados do Brasil”, avalia.
Em compensação, um dos maiores desafios enfrentados por ela é a gestão empresarial. “Gostaria de ter me capacitado mais nessa área. Venho de uma família de trabalhadores, pessoas que nunca empreenderam. Além disso, minha formação principal é em comunicação. Já tive perdas financeiras, dores de cabeça com fornecedores que não prestaram o serviço esperado. Levo isso como aprendizado para tomar melhores decisões no futuro”, garante.
Por fim, Déborah dá um conselho para quem está em início de carreira. “Ao gerenciar uma equipe, as características que mais valorizo são: vontade de aprender e capacidade de lidar com mudanças. O maior erro que alguém pode cometer é achar que está pronto para qualquer coisa, porque nós nunca estamos. Toda pessoa deve saber reconhecer os seus limites. Por isso admiro quem tem a capacidade de ouvir e evoluir”, finaliza.
Ana Bardella
Jornalista há 10 anos, escreve sobre comportamento, sexualidade, maternidade, entretenimento e saúde. Adora contar histórias e, nas horas vagas, estuda sobre astrologia e espiritualidade.