Dicas de Mulher
Embora seja uma profissão regulamentada desde 1991, ela não é remunerada e sobrecarrega mulheres com dupla jornada
Nos últimos séculos, a história das mulheres tem passado por uma profunda transformação. Com a conquista de direitos e uma maior participação na política e na vida pública, as mulheres começaram a integrar o mercado de trabalho e lutar por uma participação mais igualitária na sociedade.
Essas mudanças estão aos poucos transformando os paradigmas conservadores de que os homens devem trabalhar e as mulheres devem cuidar da casa. Isso é muito positivo para nós mulheres, pois a independência financeira nos traz maior liberdade de escolher os nossos próprios caminhos.
Essas mudanças trouxeram novas oportunidades e perspectivas para as mulheres, porém, observamos que, em muitos casos, a integração da mulher ao mercado de trabalho não a isenta das responsabilidades como cuidadora do lar. Isso faz com que muitas ainda optem por trabalhar exclusivamente no cuidado da casa e dos filhos.
Àquelas que optam ou precisam de trabalho remunerado, também recai a responsabilidade de cuidar dos filhos e da casa, acarretando em uma dupla jornada de trabalho. A segunda jornada, entretanto, não é vista como tal, já que ainda existe um pensamento de que isto seria uma obrigação da mulher.
De acordo com o Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) de 2019, as mulheres performam mais de 20 horas semanais de trabalho doméstico, contra 10 dos homens. Em contrapartida, quando olhamos para os dados de trabalho remunerado, os homens fazem a média de 42 horas semanais, contra 36 das mulheres.
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Podemos observar que a discrepância entre as horas de trabalho doméstico é maior que as do trabalho remunerado. Isso indica que as mulheres têm, cada vez mais, dividido o mercado de trabalho com os homens, porém, a divisão de trabalho doméstico continua muito desigual. Para falar mais sobre essas questões e os direitos da mulher, convidamos a advogada Giovana Montanher, especialista em direitos da mulher.
O trabalho doméstico é invisível
Quando falamos de trabalho invisível, não estamos falando de discrição. O papel que as mulheres desempenham ao cuidar, cozinhar, lavar, passar, organizar e gerir suas casas (e a de outros) é muito gritante na nossa sociedade. De acordo com o Pnad (2019), elas dedicam mais de 20h semanais aos trabalhos domésticos, para além das outras 40h de trabalho remunerado às quais muitas se dedicam.
A pesquisa mostra ainda que homens costumam performar ainda menos trabalho doméstico depois de irem morar com a cônjuge. Isso indica que há um costume cultural de tratar as esposas como responsáveis majoritárias pelo cuidado com a casa.
Para além da falta de reconhecimento deste trabalho na sociedade, há também a falta de remuneração. Afinal, se as pessoas não tivessem as mulheres da família realizando este trabalho, certamente teriam que pagar algum(a) profissional para fazê-lo.
Pesquisas demonstram que esse trabalho invisível gera uma contribuição financeira para a sociedade como um todo e para o Estado, portanto, seria justo que fosse remunerado e que tivesse direitos trabalhistas.
Direitos das donas de casa
Para cada 1 real ganho por um homem, 77 centavos são ganhos por uma mulher desempenhando a mesma função, segundo o IBGE. Dentro do planejamento familiar, essa desvalorização do pagamento feminino é fator contribuinte nas decisões financeiras.
Além da disparidade salarial, muitas dessas mulheres sofrem com a falta de políticas públicas, como vagas nas creches para mães que trabalham. Isso faz com que as mulheres sejam obrigadas a abrir mão de seus trabalhos e carreiras, para se tornarem cuidadoras integrais.
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No Brasil, a profissão de dona de casa é regulamentada desde 1991 pela Lei 8.212, para fins de previdência social. É o que nos fala a advogada Giovana Montanher, especialista em direito da família, da mulher e LGBTQIA+.
Acerca da remuneração das mulheres que se dedicam exclusivamente às tarefas domésticas, a advogada afirma que, apesar de essas mulheres normalmente terem uma rotina mais sobrecarregada do que as pessoas que trabalham fora do lar, elas não têm direito algum à remuneração. “Essas mulheres são privadas de todos os direitos trabalhistas e previdenciários, como salário, férias, décimo terceiro, aposentadoria, entre outros”.
Quanto à aposentadoria, a advogada informa que a aposentadoria é direito apenas das mulheres que realizarem contribuições facultativas à previdência. “A seguradora facultativa precisa ter a idade mínima de 62 anos e contribuir ao menos 15 anos para conseguir requerer a aposentadoria”.
Mas existem outras condições para conseguir o benefício: “é necessário que estejam inscritas no CadÚnico, tenham dedicação exclusiva ao cuidado do lar, bem como pertençam a uma família de baixa renda com até dois salários mínimos”, reforça.
E o que fazer para ter direito à aposentadoria? A previdência tem caráter contributivo, portanto, a mulher precisa pagar mensalmente uma parcela ao INSS. “Para contribuir é necessário acessar o site do Meu INSS, emitir a Guia de Previdência Social e realizar o pagamento mensal que em 2022, o valor mínimo corresponde a 5% do salário mínimo. Importante salientar que é possível fazer uma contribuição maior para receber uma aposentadoria mais alta no futuro”, aconselha Giovana.
A especialista conclui lembrando que há também o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que é uma alternativa para as mulheres que não conseguiram contribuir com a previdência ao longo da vida. Trata-se de um benefício que garante o pagamento de um salário mínimo mensal aos idosos de baixa renda que tenham 65 anos ou mais e renda familiar baixa.
Mães no mercado de trabalho
Sabemos que a participação feminina no mercado de trabalho vem aumentando nas últimas décadas, mas ainda existe um déficit quando comparada à participação masculina. E ele fica ainda maior quando analisamos a presença de pais e mães neste mercado.
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De acordo com uma pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), em 2021, a participação feminina no mercado de trabalho foi 21,56% menor que a dos homens, ambos sem filhos. Para os que encaram a maternidade e a paternidade, o gap alcançou os 33,05%.
Vemos que ainda existe um preconceito com as mulheres que escolhem a maternidade, principalmente quando foram mães recentemente. Isso é evidenciado na pesquisa da FGV, que concluiu que quanto mais novo é o filho, maior a dificuldade da mãe para retornar ao trabalho.
A nossa entrevistada Fátima, 46, relata que, após ter seu primeiro filho, acabou sendo demitida e enfrentou dificuldades para retornar ao mercado de trabalho. “Eu fiquei mais de 8 anos da minha vida trabalhando em um escritório como auxiliar de administração, mas fiz de tudo e tinha experiência nisso. Depois que tive meu primeiro filho, perdi o emprego e fiquei cuidando dele um tempo”.
Nesse período, começou um negócio próprio, uma loja de roupas no Instagram com a qual trabalhou cerca de 8 meses. No entanto “O negócio não deu muito certo e quando tentei conseguir um outro emprego na minha área, escutei perguntas sobre porque eu fiquei “desempregada” um ano e meio. Mas não estava desempregada, estava cuidando do meu filho”, conta.
O relato de Fátima evidencia a dificuldade das mulheres em terem o cuidado reconhecido como um trabalho. Apesar de ter experiência na área e conhecimento, as mulheres são preteridas nas vagas de emprego por conta da maternidade.
Essa é uma realidade enfrentada pelas mulheres, o que faz com que muitas tenham de escolher entre ter uma carreira ou uma família. As consequências disso são a ausência das mulheres no mercado de trabalho ou a submissão à condições de trabalho precárias.
Saúde da dona de casa
E como fica a saúde mental e física dessas mulheres sobrecarregadas e invisíveis? Uma pesquisa publicada nos Cadernos de Saúde Pública em 2016 evidencia uma realidade de adoecimento, principalmente mental, dessas donas de casa.
Segundo esses estudos, as trabalhadoras remuneradas apresentaram menores prevalências de doenças crônicas, de limitações provocadas pelas doenças, de transtornos mentais, além de menores taxas de mortalidade, em relação às donas de casa. Os números mostram que raça, classe social e escolaridade também são fatores que contribuem para o agravamento destas doenças.
Esses resultados evidenciam que as mulheres que se dedicam exclusivamente aos cuidados da casa sofrem os maiores impactos em sua saúde, diretamente causados pelo trabalho doméstico. Podemos pensar que um fator contribuinte no adoecimento psíquico dessas mulheres é a desvalorização de seu papel social.
A perspectiva delas
Entrevistamos duas mulheres que se dedicam ao trabalho doméstico dentro de suas casas. Ambas são casadas e uma delas tem filhos. O objetivo era entender como elas se organizam entre o trabalho remunerado e o não remunerado, e como isso é visto dentro de suas famílias.
As entrevistadas são Luciana, 51 – mãe de 3 filhos, cuida exclusivamente das tarefas domésticas há 25 anos e atualmente ajuda a cuidar do neto – e Silvana, 34 – autônoma, mãe de um filho de 5 anos e principal responsável pelas tarefas domésticas e cuidados com o filho.
Divisão das tarefas
Em ambos os casos, as entrevistadas são as responsáveis pela maioria das tarefas domésticas. Apesar de Silvana e o marido terem trabalhos remunerados fora do lar, ela afirma preparar todas as refeições da família e cuidar do filho na maior parte do tempo. “Eu assumo a responsabilidade de comprar as coisas, ir ao mercado, cozinhar, limpar, lavar roupa, passar e organizar e gerenciar tudo aqui em casa”, conta Silvana.
Além de todas as tarefas domésticas, Silvana é responsável por uma pequena empresa de roupas que abriu em 2021. Ela trabalha cerca de 8h por dia e quando volta para casa, se dedica a preparar o jantar de sua família e adiantar alguma tarefa para que sobre tempo nos finais de semana.
O caso de Luciana é similar. Depois de ter criado 3 filhos e cuidado de todas as tarefas domésticas por 25 anos, ela agora ajuda a cuidar do neto de 3 anos para que a filha possa trabalhar. Como ela mesma relata, é responsável por “arrumar a casa, fazer faxina, cozinhar, lavar roupas e cuidar do neto”.
Luciana diz que seu trabalho é reconhecido na família “eles reconhecem e eventualmente me ajudam nas tarefas domésticas, mas a obrigação acaba sendo minha”. A entrevistada afirma que raramente pede ajuda para outro membro da família “meu trabalho é esse, então se tem alguém disponível para dar uma mãozinha, eu peço sim, mas é raro e o serviço é rápido”.
Em ambas as casas, as entrevistadas afirmam haver uma divisão igualitária das finanças. Apesar de Luciana não ter um trabalho remunerado, ela afirma ajudar o marido na organização das despesas. Já Silvana diz contribuir equitativamente no pagamento das despesas e deixar a organização financeira para o marido.
Os relatos de Luciana e Silvana refletem a realidade social do trabalho doméstico no Brasil e nos levam a pensar sobre o que pode ser feito para mudar essa realidade e ampliar a igualdade de gênero e a liberdade das mulheres.
Alice Loureiro
Comunicóloga. Editora e redatora do Dicas de Mulher.