Dinheiro e Carreira

Dupla jornada feminina: o preço de ser mulher em uma sociedade machista

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Em 23.06.23

Se o descanso é um luxo, algo está muito errado. O excesso de trabalho causado pela dupla jornada feminina interfere tanto nos relacionamentos quanto na saúde da mulher. De acordo com as psiquiatras Bárbara Carvalho de Miranda e Flavia Massote, da rede Mater Dei de Saúde, é necessário reavaliar os papéis de gênero, redistribuir as tarefas domésticas e prezar pelo autocuidado. Acompanhe a matéria!

O que é a dupla jornada feminina?

A dupla jornada feminina é uma situação decorrente do excesso de trabalho atribuído às mulheres. Na maioria dos casos, isso acontece devido à desigualdade de gênero. Para além das responsabilidades profissionais, as mulheres precisam dar conta das tarefas domésticas e de cuidado. Essa última envolve as responsabilidades com crianças, pessoas idosas e membros da família, incluindo parceiros e parceiras. Segundo o Laboratório Think Olga, o acúmulo dessas funções reduz o tempo que a mulher dedica ao desenvolvimento pessoal, à política e às questões públicas de interesse.

A raiz do problema é a divisão de tarefas desigual propagada pelos papéis de gêneros engessados. Assim, sob o machismo estrutural, foi imposto à mulher o dever de cuidar, como se essa fosse uma atividade intransferível. De acordo com o levantamento do Pnad Contínua, as mulheres dedicam 21,4 horas semanais às tarefas domésticas, enquanto os homens, apenas 11 horas. As atividades mais demandadas são fazer a comida, lavar a louça e as roupas, limpar e arrumar a casa.

No relatório Sem Parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia, 47% das entrevistadas afirmaram ser responsáveis pelo cuidado de outras pessoas – 57% responsáveis por filhos de até doze anos; 6,4% por outras crianças, como sobrinhos e netos; 27% por idosos; e 3,5% pessoas com deficiência.

O mesmo relatório chama atenção para outra classificação: 14% das mulheres se dizem responsáveis por “adultos saudáveis e sem deficiência”, considerados “socialmente independentes”. Na prática, a dupla jornada feminina é, por vezes, tripla, sem hora para acabar e não remunerada. De acordo com a Oxfam, se fosse colocar na ponta do lápis, o cuidado valeria, mundialmente, o equivalente a US$ 10,8 trilhões por ano.

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A valorização do cuidado

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No Brasil, o trabalho doméstico não conta para o planejamento da aposentadoria, diferentemente da Argentina, que possui legislação específica para isso. O país reconhece a maternidade como trabalho desde 2021. Cada filho nascido vivo acrescenta de um a três anos no tempo de contribuição necessário para se aposentar.

A adoção acrescenta, por filho, dois anos no tempo de serviço. Crianças e adolescentes com deficiência, um ano, como posto no decreto argentino. Ainda, mulheres participantes do programa social para famílias de baixa renda acrescentam dois anos de serviço por filho.

No Congresso Nacional brasileiro, há o projeto de Lei denominado Cuidado Materno Também é Trabalho (PL 2757/21), proposto pela deputada federal Talíria Petrone. O PL propõe a aposentadoria referente a um salário mínimo às mulheres com mais de 60 anos que exerceram os cuidados domésticos.

O PL 2757/21 está apensado ao PL 2647/21, da deputada Perpétua Almeida (PCdoB), que também propõe condições semelhantes à lei argentina. A criação de filhos, biológicos ou adotados, complementa a contagem de tempo para a aposentadoria de donas de casa e mulheres com dupla jornada.

Efeitos da dupla jornada na saúde da mulher

Em um mundo perfeito, o ambiente profissional e o doméstico não se misturam. Entretanto, a realidade mostra que tal situação nem sempre é possível – principalmente quando se é mãe solo. Uma hora, o corpo sente a rotina pesada.

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De acordo com a psiquiatra Bárbara, a sobrecarga de responsabilidades da dupla jornada feminina traz consequências para a saúde mental e física da mulher. Abaixo, a profissional aponta os principais sintomas:

Segundo Bárbara, os excessos da dupla jornada feminina também resultam em uma alimentação pobre em nutrientes, pouca atividade física, escassos momentos de lazer e menor convivência de qualidade com a família e amigos. Por isso, é importante ter uma jornada equilibrada.

Como lidar com a dupla jornada

Administrar a jornada de trabalho exige de homens e mulheres mudanças comportamentais. A primeira é reavaliar o juízo de valor atribuído ao trabalho doméstico e ao gênero feminino. A sociedade costuma enxergar o trabalho masculino como um grande feito, isto é, há utilidade. Já as tarefas de cuidado permeiam o âmbito do inútil, pois, socialmente, não há um lucro visível (e só não há porque essas atividades foram invisibilizadas no decorrer dos séculos).

Segundo a psiquiatra Flavia, “quando há uma divisão doméstica entre homens e mulheres, os homens normalmente se encarregam das atividades que envolvem menos tempo e são mais prazerosas”, por exemplo, fazer as compras do mês. Ainda, “como a expectativa sobre eles é menor, qualquer atividade realizada é mais valorizada”, muitas vezes, recebendo um reforço positivo.

Para Bárbara, é necessário se afastar da exigência e da busca pela perfeição das atividades femininas. “Entender e aceitar que não somos supermulheres. Temos limites e precisamos respeitá-los”. Flávia reforça que o valor da mulher não deve ser atrelado à perfeição dos cuidados oferecidos.

Sem a divisão de tarefas, a dupla jornada feminina continuará se perpetuando. Por isso, é tão importante impor limites. Mais do que isso, “é preciso estabelecer a escuta interna e a auto-observação”, explica Flávia. A profissional indica aprender a observar o seu ritmo interno, ter hábitos saudáveis de sono e alimentação, bem como praticar atividades físicas. Além disso, ela recomenda nutrir amizade com outras mulheres – fator “que já foi estabelecido como um protetor para doenças mentais”.

Outro ponto está em não se culpar e se sobrecarregar. Nas palavras de Bárbara, “lembre-se que pedir ajuda não te faz menor ou pior, muito menos tira seu crédito. Ter humildade para ver que, às vezes, não conseguimos fazer tudo sozinhas e a ajuda do outro pode agregar muito”. Ainda, é preciso “aprender a dizer não para múltiplas demandas e procurar ajuda profissional quando se perceber sem energia, irritada, triste, isolada socialmente e sem prazer na vida”, finaliza Flavia.

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A dupla jornada feminina desencadeia o cansaço emocional. Por isso, se estiver em uma situação assim (como grande parte das mulheres), procure acompanhamento psicológico. No dia a dia, separe um tempo para descansar sem culpa e, antes de cuidar dos outros, lembre-se de cuidar de si.

Comunicadora, voluntária e empreendedora. Apaixonada por moda, leitura e horóscopos. Graduada em Comunicação Social - Jornalismo pela PUC-Rio, com domínio adicional em empreendedorismo.