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Saiba o que fazer para ajudar uma vítima de estupro

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Atualizado em 10.11.23
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Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021 mostram que 88,2% das vítimas de estupro são mulheres. O alto número demonstra que o gênero é a principal causa desse crime, colocando-o entre um dos mais danosos tipos de violência contra a mulher. Nesta matéria, você entenderá o que é estupro, suas implicações na vida da mulher e o que fazer para acolher uma vítima dessa violência.

O que é estupro

De acordo com o Código Penal, caracteriza-se estupro “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.

Sabrina Donatti, advogada especialista em direito da mulher, explica que a lei criminaliza não só a penetração, mas quaisquer práticas sexuais feitas sem consentimento ou sob coação. Pode ser uma carícia, um toque inconveniente ou mesmo a masturbação. Mas a complexidade dessa violência não se restringe a poucas palavras. Seu significado é muito mais do que sexo forçado.

Embora ocorra com homens e mulheres, independentemente da idade, são elas as que mais sofrem com a violência. A assistente social da Prefeitura Municipal de Aracaju, Liliana Aragão de Araújo lembra que essa é uma das mais antigas formas de dominação do homem sobre a mulher e uma violência originada pelo patriarcado.

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O patriarcado, por sua vez, se constitui “em um sistema social de dominação e que, muitas vezes, se materializa no uso da violência, sobretudo no espaço doméstico, onde a sexualidade masculina é estimulada e vinculada à violência, enquanto a feminina está vinculada à passividade, obediência e submissão”, afirma Araújo, que também é Doutora e Mestre em sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe (PPGS-UFS).

É seguindo essa lógica que a assistente social lembra que o estupro é também uma estratégia de guerra, “utilizado como arma para aviltar o oponente como forma de humilhação e desrespeito”. Exemplos recentes são os relatos da população ucraniana que denunciou tropas russas por violentar civis. Para a especialista, situações como essas são uma forma de terrorismo.

O que é consentimento

Para que o sexo seja um momento prazeroso e de boas lembranças, é muito importante que todas as pessoas concordem com a relação. Qualquer decisão tomada sem o consentimento do outro pode configurar crime de estupro. E o que é o consentimento?

Segundo Donatti, a advogada entrevistada pelo Dicas de Mulher, consentimento “é quando uma pessoa está possibilitada de dizer ‘sim’. Ela compreende as implicações da relação e pode decidir por continuar ou desistir”. O consentimento é essencial para diferenciar sexo e estupro.

Entretanto, só o ‘sim’ não basta para o consentimento, pois nem sempre a mulher está numa situação de plena consciência ou concordância: “se ela está sob efeito de drogas, de álcool, ela não tem como dizer ‘sim’ ou ‘não’. Se ela for uma criança, também não tem como consentir nada, [justamente] porque ela é uma criança. A gente [a Justiça] coloca a criança como incapaz de dizer sim ou não”, reforça Sabrina Donatti. Por lei, menores de 14 anos não podem autorizar uma relação sexual.

Além disso, nesses momentos não há espaço para interpretações e achismos. Relacionamentos atuais, anteriores e breves, como as “ficadas”, não isentam o homem de consentimento, principalmente quando a mulher está alcoolizada, conta a advogada. Nessas situações, a profissional aconselha a não prosseguir.

Estupro na lei brasileira

A seguir, conheça as leis referentes a esse tema na legislação brasileira e as propostas do congresso para ampliar o entendimento desse crime.

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Crime de estupro

Sua definição é “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.” Esse conceito foi ampliado pela Lei 12.015/09, tornando estupro qualquer ato sexual feito sob ameaça ou chantagem, não sendo necessária a penetração para configurar crime.

Por causa disso, a lei também se aplica a crimes cometidos no meio virtual, o chamado estupro virtual. Nele, é comum o uso da violência psicológica, ameaçando divulgar imagens íntimas e vídeos de sexo. Aqui, a vítima é chantageada a praticar atos que satisfaçam virtualmente o desejo sexual do abusador.

A pena para o crime de estupro é de 6 a 10 anos de reclusão. Se a vítima for menor de 18 anos, porém maior de 14 anos, ela aumenta para 8 a 12 anos. Se resultar em morte, para 12 a 30 anos.

Estupro de vulnerável

Esse crime ocorre quando a violência se dirige a menores de 14 anos. Também é considerado estupro de vulnerável quando a vítima não possui discernimento para consentir o ato, isto é, quando, “por enfermidade ou deficiência mental”, ela é impossibilitada de dizer sim.

Situações em que a vítima não pode recusar, se defender ou oferecer qualquer tipo de resistência também são consideradas vulnerabilidade. Nesse caso, a pena é de 8 a 15 anos de prisão. Se houver lesão corporal grave, de 10 a 20 anos; em caso de morte, a pena passa a ser de algo entre 12 e 30 anos.

Lei Maria da Penha

Esta lei reconhece o abuso como uma forma de violência doméstica. Segundo ela, a violência sexual é “qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força”.

Ela também considera violência qualquer tentativa de forçar a mulher a expor e a comercializar seu corpo, impedir o acesso a métodos contraceptivos, forçar casamentos, gravidezes e abortos contra a vontade da mulher.

A Lei Maria da Penha protege mulheres do abuso sexual de seus companheiros, mostrando que o casamento não dá aos homens o direito sobre o corpo feminino. Ainda que casados, eles precisam do consentimento da mulher.

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Divulgação de cena de estupro ou de estupro de vulnerável

Vítimas de violência sexual que tenham o abuso ou cenas de nudez compartilhadas na internet e fora dela também estão resguardadas pela justiça. Segundo o Código Penal brasileiro, é crime “oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar” qualquer registro audiovisual da violência sexual como fotos, vídeos, entre outros.

Também é considerado crime quando o material divulgado faz apologia ou induz a prática da violência sexual, bem como sendo pornografia. A pena desses casos é de um a cinco anos de reclusão.

Para quaisquer casos de estupro e estupro de vulnerável, aumenta-se de um a dois terços da pena se for configurado estupro coletivo, com duas ou mais pessoas praticando a violência, ou estupro corretivo, usado “para controlar o comportamento social ou sexual da vítima.”

A comunidade LGBTQIAP+ são as maiores vítimas desse tipo de abuso, pois fogem da heteronormatividade e binaridade impostas pelo patriarcado. Nesses casos, a violência é usada para “corrigir” suas identidades de gênero e orientações sexuais.

Lei Mariana Ferrer

Aprovada em 2021, a Lei 14.245 foi criada a partir do julgamento do crime de estupro sofrido pela promotora de eventos Mariana Ferrer. Na ocasião, ela foi humilhada e constrangida diversas vezes pelo advogado do acusado durante a sessão. Além de ser ofendida, a promotora teve fotos íntimas divulgadas e usadas para colocar em dúvida sua credibilidade.

A Lei protege vítimas e testemunhas de crimes de intimidação e ameaça feita pelas partes envolvidas nas audiências, aumentando a punição para crime de coação seguido de multa. Em casos de crimes sexuais, a pena aumenta em um terço.

Stealthing

O stealthing, que significa o ato de retirar o preservativo sem que a mulher veja, configura em alguns países como crime de estupro. Suíça, Nova Zelândia e o estado da Califórnia (EUA) estão entre eles. Entretanto, no Brasil, o ato não é considerado crime de estupro.

Segundo Sabrina Donatti, ele pode ser enquadrado como violação sexual mediante fraude, ou seja, quando a relação sexual só ocorre porque a outra pessoa foi enganada, dificultando ou impedindo-a de desistir do ato.

Aqui, Donatti pontua que o conceito de enganar é muito importante, pois é ele que o diferencia do crime de estupro estipulado pelo Código Penal. A pena para esses casos é de dois a seis anos de reclusão.

Entretanto, há um projeto de lei que busca tornar o stealthing crime. O PL 965/22, do deputado Delegado Marcelo Freitas (União-MG), propõe uma punição de um a quatro anos de prisão ao abusador. Até o momento, a projeto permanece na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), na Câmara dos Deputados, aguardando um relator.

O aborto em caso de estupro

O Artigo 128 do Código Penal exclui qualquer punição para o aborto se a gravidez resulta de estupro. Ele, porém, precisa ser consentido pela mulher ou seu representante legal, em casos de menores de idade ou qualquer outro motivo que torne a mulher incapaz de tomar esta decisão por si mesma.

Donatti relembra que esse procedimento pode ser feito a qualquer momento. Não existe na lei restrições quanto ao tempo de gestação indicado para a interrupção. Qualquer restrição imposta sem nenhum embasamento legal ou mudança na lei é considerada inconstitucional e uma violação do direito da mulher.

No Brasil, além de casos de violência sexual, a interrupção da gravidez é permitida para salvar a vida da mulher ou em casos de anencefalia, quando há má formação do cérebro.

O que fazer em caso de estupro

Saber o que fazer após a violência é essencial para garantir a saúde física e mental e a proteção da vítima. Veja o que fazer do ponto de vista jurídico e médico de acordo com os profissionais que atuam nessas áreas.

O que fazer na área da saúde

Segundo a Dra. Carla Brasil, médica da Secretaria de Políticas e Promoção da Mulher do Rio de Janeiro, procurar um posto médico de emergência é a primeira e mais importante ação a ser feita, pois será necessário realizar exames que garantam a saúde da mulher. Além disso, é no hospital que ela receberá os medicamentos para infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e uma pílula do dia seguinte, para evitar a gravidez.

Já os exames são para verificar se há indícios de ISTs, lesões corporais, gravidez, entre outros. Janaína Ribeiro, especialista em Ginecologia e Obstetrícia pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), recomenda refazê-los 30 e 180 dias após os primeiros para atestar o bem-estar, inclusive o de gravidez, “porque o exame detecta gestação em média do 10º ao 14º dia após a relação sexual”, afirma a profissional.

“Além dos impactos físicos, o estupro causa impactos emocionais, psicológicos e sociais. Os traumas psicológicos desencadeiam doenças psíquicas e/ou físicas – lesões físicas de leve a graves que podem deixar sequelas através de ISTs, além de uma gravidez indesejada. [Além de sequelas] sociais, pois as vítimas vão necessitar de apoio dos aparatos psicossociais e legais”, explica a Dra. Carla Brasil.

Segundo a psicanalista e sexóloga Virgínia Gaia, esses impactos podem se apresentar na área afetiva, social e profissional. Quando com crianças, elas podem se tornar “muito ansiosas, muito tímidas, com baixa autoestima, com dificuldades de se posicionar e podem vir a repetir padrões de violência em outras relações.”

Por isso, a saúde mental também deve ser priorizada. O acompanhamento psicológico “deve ser oferecido e quem irá indicá-lo será a equipe que faz o atendimento desta mulher, tanto nas unidades de saúde como nos equipamentos ou nas unidades especializadas”, afirma Carla Brasil.

Em caso de gravidez indesejada, a interrupção é permitida por lei. Nesses casos, um acompanhamento psicológico também será feito antes do procedimento: “este atendimento deve ocorrer, mas não de uma forma isolada, sendo de suma importância, pois o procedimento de interrupção também necessita de acompanhamento à mulher”, explica a Dra. Carla Brasil.

O que fazer do ponto de vista jurídico

Para denunciar a violência sexual, a mulher deve procurar unidades como as delegacias comuns ou as especializadas, o Ministério Público, a Defensoria Pública ou os Centro Especializados de Atendimento à Mulher (CEAM). Lá, haverá acolhimento e atendimento humanizado.

De acordo com a advogada especialista em direito da mulher, alguns elementos e ações podem ajudar a mulher a provar a violência. O primeiro deles, indica Sabrina, é não tomar banho após a agressão. Se houver penetração sem preservativo, por exemplo, o sêmen poderá ser coletado. As unhas e as roupas da mulher também podem apresentar elementos que identifiquem o agressor. Testemunhas do acontecido e mensagens trocadas, em caso do estuprador ser conhecido, também ajudam.

As profissionais ressaltam que, ainda na delegacia, a mulher poderá ser encaminhada para uma unidade de saúde, caso ela não o tenha feito anteriormente. Em caso de gravidez indesejada, Sabrina ressalta que a mulher tem o direito de optar pela interrupção.

Se a gravidez se completar, mas a mulher não desejar a maternidade, ela poderá dar a criança para adoção. Esse processo é legal e disponível para qualquer mulher, independentemente de ter ou não sofrido violência sexual.

Como acolher uma vítima de estupro

Lidar com a situação de violência pode ser muito difícil. Nessas horas, é necessário todo o apoio da família e dos amigos, assim como preparo e empatia das equipes profissionais de atendimento à mulher.

Abaixo você encontra o que fazer e o que não fazer ao acolher uma vítima de estupro. Elas são recomendações das profissionais já citadas e tornarão esse momento um pouco mais acolhedor e respeitoso, como deve ser.

1. Tenha empatia

O momento é delicado e doloroso. Passar por todo esse sofrimento não é fácil, principalmente quando o agressor é uma pessoa conhecida ou parte da família. Tenha respeito, não questione demais, nem faça juízo de valor. Ofereça acolhimento e apoio emocional. Essa rede de apoio e compreensão também são importantes no processo de superação, portanto deve ser feito constantemente.

2. Não julgue

As roupas usadas pela mulher, a hora que ela chega à casa, se está ou não acompanhada, seu comportamento usual, nada disso justifica a violência sexual. Questionar essas atitudes é culpabilizá-la pela violência. Em vez disso, escute o que ela tem a dizer e oriente, caso necessário, a procurar os canais de denúncia e auxílio médico.

3. Não revitimize

Vítimas de agressão sexual têm o direito de não serem revitimizadas, ou seja, passar por novas violências após a situação que originou o crime. Embora não haja uma legislação sobre isso, é recomendado que a ela não seja obrigada a contar sua história várias vezes, a fim de evitar que o sofrimento continue.

4. Atendimento humanizado

Ao aplicar todos os passos acima, os profissionais de saúde e jurídico aplicam o chamado atendimento humanizado. É com esse atendimento que a vítima de estupro se sentirá confortável e será encorajada a denunciar o crime.

Abrir um boletim de ocorrência e dar continuidade a esse processo não só são os primeiros passos para punir o agressor, como ajudam a reunir dados importantes para criar políticas de proteção e assistência a mulheres e crianças brasileiras, atualizá-las sempre que possível e avançar nos direitos das mulheres. Veja a seguir os dados mais recentes do país.

Dados sobre o estupro no Brasil

O gráfico abaixo apresenta os dados mais recentes sobre o crime de estupro no Brasil. Nele você encontra o perfil etário e racial das vítimas e um pouco da percepção da população sobre os atos considerados violência sexual.

  • De acordo com a pesquisa Percepções sobre direito ao aborto em caso de estupro, feito pelo Instituto Locomotiva e o Instituto Patrícia Galvão, 95% das mulheres têm medo de serem vítimas de estupro.
  • Ao mesmo tempo, o entendimento da população sobre o tema avançou. Hoje, brasileiros e brasileiras reconhecem como estupro a relação sexual com mulheres inconscientes, bêbadas, drogadas, com deficiência mental grave e relações com menores de 14 anos – ainda que “consentidas” .
  • Práticas sexuais sem consentimento da mulher como penetrações, sexo oral entre outros também são vistos como crimes.
  • O uso indevido da posição profissional – médicos, professores, padres/pastores – é condenada, bem como o uso do convívio e intimidade entre parceiros e maridos para forçar relações sem preservativos ou que os retiram escondido durante o ato sexual.
  • Segundo o mesmo levantamento, 122,9 milhões de brasileiros conhecem uma mulher vítima de estupro; 14,1 milhões se reconheceu como vítima de estupro. Em 84% dos casos foram cometidos por pessoas do círculo social, 38% por um parente do sexo masculino, 19% por amigos da família, conhecidos e parceiros íntimos.
  • Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2021, 66.020 boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável foram registrados no Brasil, crescimento de 4,2% em relação a 2020. Ao todo, 52.797 mil mulheres foram estupradas.
  • O mesmo levantamento mostra que o país tem 1 estupro a cada 10 minutos e 1 feminicídio a cada 7 horas.
  • Mulheres representam 88,2% das vítimas, sendo a maioria em todas as faixas etárias. Já as vítimas do sexo masculino são, majoritariamente, crianças. 61,3% são crianças de 0 a 13 anos, 19,1% entre 5 e 9 anos.
  • Sobre o perfil étnico racial, 52,2% das vítimas eram negras, 46,9% brancas, e amarelos e indígenas somaram pouco menos de 1%.

O estupro é um tipo de violência contra a mulher, e é essencial saber quais são os outros tipos de violência sexual e o que fazer para combatê-las. Também é importante conhecer os canais de denúncia espalhados pelo país. Não deixe de entender também o que é a cultura do estupro e quais os seus impactos na sociedade.

Comunicadora, voluntária e empreendedora. Apaixonada por moda, leitura e horóscopos. Graduada em Comunicação Social - Jornalismo pela PUC-Rio, com domínio adicional em empreendedorismo.