Sociedade

Feminicídio e imprensa: histórias de morte morrida ou matada?

Dicas de Mulher

Em livro inédito, pesquisadoras e jornalistas analisam como a imprensa perpetua a violência contra mulher enquanto deveria informar com ética e responsabilidade

Atualizado em 27.08.24
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A imprensa tem um papel fundamental para ampliar e aprofundar o debate sobre um tema extremamente importante: a violência contra a mulher. A mídia tem o poder de influenciar crenças e comportamentos. Diante disso, Niara de Oliveira e Vanessa Rodrigues, realizaram pesquisas sobre como a imprensa narra os casos de feminicídio em todos os veículos de comunicação.

Niara de Oliveira e Vanessa Rodrigues são jornalistas, feministas e atuaram com assessorias de imprensa, produção de conteúdo para veículos de mídia e redes sociais. Durante três anos, dedicaram-se à pesquisa sobre feminicídio e imprensa. Com isso, escreveram o livro ‘Histórias de morte matada contadas feito morte morrida’ (2021).

Na obra, relatam como a imprensa pode perpetuar e colaborar com a incidência de crimes motivados por gênero. Em entrevista ao Dicas de Mulher, as autoras dão detalhes sobre o livro e como essa pesquisa pode impactar a sociedade positivamente e incentivar as pessoas a refletirem sobre o assunto. Confira!

Histórias de morte matada contadas feito morte morrida

Lançado em dezembro de 2021, pela editora Drops, o livro possui 320 páginas escritas por Niara de Oliveira e Vanessa Rodrigues, com o intuito de demonstrar como a imprensa narra os assassinatos de mulheres motivados por gênero e como as vítimas são responsabilizadas.

As jornalistas contam que o projeto surgiu a partir da comunidade virtual “Não foi ciúme” (NFC). Desde 2015, feministas e jornalistas que faziam parte dessa comunidade, analisaram a narrativa de crimes de gênero, principalmente de sites e portais de notícias.

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“Era um trabalho que já fazíamos, analisando criticamente e sugerindo, principalmente, refraseios de títulos. A ideia do livro, propriamente, surgiu no final de 2020, já na reclusão por causa da pandemia de Covid-19. Nós percebemos que o problema persistia, apesar de tudo que já tínhamos feito na NFC”, conta Vanessa.

Levantamento dos dados

Para estruturar e desenvolver o livro, as autoras levantaram informações dos últimos 40 anos. “Após a campanha ‘Quem ama não mata’ e o caso de enorme repercussão midiática da Angela Diniz, assassinada por Doca Street, justamente para capturar impactos e por estarmos atualmente num período também de campanha do movimento feminista contra o feminicídio (‘Nem pense em me matar’)”, informaram.

Niara conta que as pesquisas foram focadas na imprensa escrita, impressa e virtual, e relembra o caso de grande repercussão em que Lindemberg Alves Fernandes, mata a ex-namorada Eloá Pimentel. O crime foi cometido em 2008 após mais de 100 horas de sequestro, acompanhadas ao vivo pelas câmeras de TV..

“Listamos os casos mais famosos e quais deles analisaríamos, porque precisávamos comparar com os casos de menor repercussão. Ter muito material atual, era também muito importante para verificar padrão, forma, termos e tons”, completa Vanessa.

Como a imprensa aborda casos de feminicídio?

As jornalistas Niara de Oliveira e Vanessa Rodrigues | Dicas de Mulher

A mídia, muitas vezes, retrata a violência contra a mulher de forma sensacionalista, reforça estereótipos e culpabiliza a vítima apontando justificativas para o crime. Frequentemente, são empregados termos como ‘motivação do crime’, ‘ciúmes’ e ‘crime passional’.

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Além do mais, as notícias abordam casos de feminicídios parcialmente e, normalmente, apresenta o crime como descontrole emocional do feminicida, devido ao uso de drogas e bebidas. Segundo Niara, a imprensa usa mais do que termos e tons, e ainda redige feminicídios pelo viés do crime passional, mesmo que essa hipótese já tenha sido descartada judicialmente.

“É como se existisse um manual nunca publicado que inverte, inclusive, o que aprendemos na faculdade sobre a narrativa de notícias, a linguagem direta, simples e objetiva, observando o modelo da pirâmide invertida”, aponta.

Para Vanessa, “a narrativa de feminicídios é, portanto, quase que a negação do próprio jornalismo, além da maneira desrespeitosa que corresponsabiliza a vítima e poupa feminicidas”. Há casos em que a mídia busca fotos das mulheres nas redes sociais, que julgam como sensuais e provocantes, para responsabilizá-las de alguma forma.

As jornalistas acreditam que a imprensa reproduz a crítica de misoginia estrutural, por esse motivo, emprega determinados termos e tons para relatar o feminicídio. Para elas, é bem provável que essa postura seja intencional, pois o modelo sempre se repete. “Não é humanamente admissível que seja uma escolha consciente, sabendo dos danos causados, embora seja sempre uma escolha”, diz Niara.

A narrativa passional e romantizada do crime

Conforme análise das jornalistas, os feminicídios, geralmente, são narrados na voz passiva e os termos ‘mulher é morta’ e ‘mulher é encontrada morta’ são repetidos exaustivamente. “A voz passiva tem a função de reduzir a responsabilidade do autor da ação, e no caso do feminicídio e demais crimes de gênero, corresponsabiliza a vítima”, explicam as jornalistas..

Para Niara, essa “corresponsabilização é buscada por uma motivação que justifique a narrativa passional e romântica do crime, tanto em detalhes do comportamento da vítima quanto em imagens, induzindo ao julgamento da vítima”.

O feminicídio no Brasil tem cor e classe social

O Brasil é o 5º país com mais casos de feminicídio no mundo e, esse ano, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, levantou dados que apontaram que as mulheres negras representam 62% das vítimas no país. Já nos casos de mulheres indígenas, não há dados específicos, elas entram para as estatísticas de mulheres não brancas.

Conforme relata Niara, a forma que a imprensa retrata o feminicídio quando se trata de raça e classe social, muda a começar pela cobertura. “O rosto do feminicídio no Brasil é de uma mulher negra, pobre e periférica, enquanto na imprensa, o rosto do feminicídio ainda é de uma mulher branca de classe média”.

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Ela destaca que “o registro no corpo da matéria desses recortes de raça, classe, moradia, além de mais detalhes sobre a vítima, sua história, quem é ela, sua rotina, filhos, amigos e profissão. Quando se busca mais informações sobre a vítima é na tentativa de compor a narrativa da passionalidade inexistente do crime”.

A responsabilidade social da imprensa

O papel da mídia é informar sobre o feminicídio com responsabilidade ética e social, sem culpar a vítima. Mais do que noticiar, é importante contextualizar a violência contra a mulher para combater a naturalização da desigualdade entre os gêneros.

Segundo Vanessa, quando a imprensa retrata o caso de forma humanizada, que acolhe a vítima e trata o feminicídio como crime hediondo, a sociedade costuma reagir compassivamente. “Se a imprensa retrata a mulher como coisa, como descartável, é assim que ela será vista e entendida”.

Para Niara, isso impacta na “conscientização e na produção de políticas públicas de prevenção à violência contra a mulher, além de dar visibilidade aos órfãos – em média dois a cada feminicídio – que ficam completamente desassistidos e brutalmente traumatizados”.

As autoras acreditam que o livro pode gerar impactos positivos e estimular as pessoas a refletirem sobre o assunto. “Esse é o nosso objetivo, que a imprensa e estudantes de jornalismo atentem para essa fórmula repetida e errada em narrar feminicídios, e a sociedade passe, não apenas a perceber nesse crime como ele é, um crime de ódio (misoginia), como leiam as notícias criticamente”.

Formada em Letras e pós-graduada em Jornalismo Digital. Apaixonada por livros, plantas e animais. Ama viajar e pesquisar sobre outras culturas. Escreve sobre diversos assuntos, especialmente sobre saúde, bem-estar, beleza e comportamento.