Dicas de Mulher
'Canção da Manhã' é o poema de abertura da coletânea 'Ariel', de Sylvia Plath. A autora compartilha o sentimento conflitante da maternidade, sendo uma boa reflexão sobre as mães solo do Brasil.
Mãe solo é um termo que se refere a mulheres que criam seus filhos sozinhas, seja por escolha ou circunstância. A responsabilidade integral cria desafios únicos que vão além da conciliação da vida profissional e familiar. Acima de tudo, ser mãe solo é uma demonstração de coragem, determinação e amor incondicional pelos filhos, sendo um tema que merece ser amplamente debatido. Nesta matéria, a advogada de direito da família Elizangela Ribeiro explica a mudança de denominação e como o governo brasileiro enxerga essas mulheres, enquanto as mães Leticia Vaz (nome fictício) e Thalita Maisa compartilham as suas histórias com o Dicas de Mulher.
O termo mãe solo
Segundo a advogada, a expressão ‘mãe solteira’ foi substituída por mãe solo “porque a parentalidade não deve ser confundida com o estado civil da mulher. Independentemente do estado civil da mãe, ela assume sozinha todas as responsabilidades financeiras e afetivas em relação ao filho”. Logo, o termo reflete com mais precisão dessa realidade e reconhece os esforços da mulher em criar seus filhos sozinha, independentemente se está em um relacionamento amoroso com o progenitor ou outro companheiro.
O antigo vocábulo é marcado por uma carga pejorativa. A sociedade, que ainda carrega uma forte visão machista sobre a mulher, a culpa por ser ‘irresponsável’ e ‘inconsequente’, “como se ela conseguisse conceber um filho sozinha”, explica a especialista. Esse pensamento torna a vivência das mães ainda mais desafiadora. O termo atual pode ser igualmente usado na versão ‘pai solo’, para aqueles que assumem a mesma função em uma família monoparental, uma realidade mais rara, mas também existente.
Relacionadas
Como é ser mãe solo no Brasil
Conforme apontam os últimos dados do IBGE, são mais de 11,6 milhões de mães registradas como únicas responsáveis pelos cuidados com os filhos no Brasil. Apenas no primeiro semestre de 2022, foram registradas 55 mil crianças sem o nome do pai.
Publicidade
A maternidade solo é a realidade de muitas famílias brasileiras e acomoda discussões complexas sobre desigualdades de gênero, raciais, econômicas e sociais. Enfrentando muitas vezes a sobrecarga, as mães Leticia e Thalita se deparam com uma rotina desafiadora e compartilham uma parcela de suas experiências diárias.
Rotina de uma mãe solo
Mãe de um menino de 2 anos e 7 meses, Leticia Vaz encara uma jornada tripla de trabalho: cuidar do filho, da casa e se dedicar à profissão. No período da manhã, dá atenção, brinca e se ocupa com a criança enquanto realiza algumas atividades domésticas com ele no colo. Ela comenta que às vezes pede ajuda para que ele guarde os brinquedos, mas se desdobra como pode para conciliar os afazeres.
No período da tarde, quando o filho está na escolinha, aproveita para resolver algo fora de casa e participar de reuniões profissionais. Leticia, que trabalha em home office, comenta que “sair com criança demanda muito mais tempo e planejamento”. Portanto, toda sua rotina é organizada de modo a otimizar o tempo e as obrigações nos horários em que a criança não precisa de sua total atenção.
Caso não consiga dar conta de alguma tarefa durante o dia, ela ainda utiliza a noite e abre mão de algumas horas de descanso para terminar os projetos, após colocar o filho para dormir. Quando surge algum compromisso ou imprevisto profissional fora do horário da escola, as mães solo precisam recorrer a uma rede de apoio ou contratar alguém para cuidar da criança pequena. Leticia compartilha que “serviços de cuidado, remunerados corretamente, não cabem no orçamento da maioria das famílias. Então mesmo na dificuldade, isso é um imenso privilégio”.
A afirmação é sustentada por Thalita, que reforça que a maior dificuldade na maternidade solo é a falta de uma rede de apoio. Mãe de dois filhos, ela conta que um deles tem hemofilia, o que faz com que ele precise ficar internado algumas vezes. Nessas situações, ela precisa sempre levar a outra filha porque não tem quem possa cuidar dela.
Apesar das dificuldades da rotina, para Thalita, enfrentar o medo e ser mãe foi a melhor escolha que fez. Ela relata que sentiu insegurança e ouviu de outras pessoas que não daria conta de criar os filhos sozinha, após sair de um relacionamento abusivo. “Não olhei para trás e segui em frente. Hoje tenho certeza de que foi minha melhor escolha”, celebra.
Publicidade
Preconceitos e a sobrecarga das mulheres
Além de se dividirem em várias para proporcionar uma criação saudável aos filhos, as mães solo ainda sofrem preconceito por sua situação, recebendo julgamentos e olhares maldosos. “Cadê seu marido?” “Quem é o pai deles?” são questionamentos ouvidos não só pelas entrevistadas, mas por muitas mulheres que vivenciam a maternidade solo.
Leticia destaca que há a tendência de culpabilizar as mães pela escolha dos genitores. Se eles falham e não procuram participar da vida dos filhos, a culpa recai sobre elas. Isso porque a sociedade coloca a responsabilidade sobre o pai da criança na mulher, quando “não é papel da mulher educar um homem adulto ou torná-lo alguém responsável. A gente também não nasce sabendo ser mãe. A gente se responsabiliza e aprende”, desabafa.
A invisibilidade das tarefas de cuidado contribui ainda mais para a vulnerabilidade das mães solo, que muitas vezes se encontram em estado de exaustão para conciliar todas as suas responsabilidades. Situação que leva Vaz a concluir que “enquanto crianças estiverem sendo criadas por mães exaustas, nós estaremos falhando com o futuro”.
Para tentar combater esse cenário, ela diz que trabalha a paciência e calma, além de priorizar tarefas e se permitir deixar algumas delas de lado para preservar o emocional. Já Thalita, compartilha que ser mãe solo não é deixar de ser mulher. É importante preservar a individualidade dessas mulheres e lembrar que elas possuem sua própria vida para além dos cuidados com os filhos. “A mãe solo pode namorar e tem direito de se apaixonar novamente”, finaliza.
O discurso de empoderamento feminino não pode se esquecer de mães e, principalmente, das mães solo. É mais que necessário que elas sejam acolhidas pela comunidade e possam contar com uma rede de apoio não apenas para olhar por seus filhos quando elas se sentem cansadas ou estão ocupadas, mas também que as humanize e as valorize enquanto mulheres que merecem lazer e um tempo para si.
“Eu acredito na transformação, acredito na luta e acredito nas próximas gerações e é isso que tem me mantido viva e pulsante nestas discussões e enfrentamentos. Precisamos de representatividade política, de projetos de lei que pensem as mães solo e as crianças, com importância e de mudanças estruturais urgentes.”
– Leticia Vaz
Os relatos de Thalita e Leticia são apenas um recorte da ampla e diversa vivência da maternidade solo no Brasil. Mas algo que todas têm em comum é o reforço de coragem, amor e preocupação com os filhos e seu bem-estar, sem deixar anular suas próprias individualidades. O apoio a mães solo pode surgir de diversas maneiras e há formas de minimizar algumas carências de suas realidades.
Como a mãe solo é vista pelo Estado?
A implementação de políticas públicas e de auxílio a mães solo se torna fundamental para a sobrevivência de milhões de famílias e a garantia de uma vida digna. De acordo com os dados do estudo realizado pelo IBGE, as casas de mães solo negras possuem o maior percentual de adensamento excessivo, quando 3 ou mais moradores compartilham um mesmo cômodo como dormitório. Situação presente em 11,9% dos domicílios de mães negras, contra 7,7% de mães brancas. Tudo isso precisa ser considerado quando o assunto é a maternidade solo, uma vez que os desafios extrapolam a sobrecarga das mães.
No momento, as mães solo em situação de vulnerabilidade social tem direito aos mesmos benefícios sociais que famílias não-monoparentais, mas existem projetos que ampliam os auxílios para famílias monoparentais tendo em vista as suas particularidades. Um deles é a PL 3717/2021, aprovado em 2021 e que dá prioridade ao atendimento de mães solo em diversas políticas sociais e econômicas.
Elizangela explica que entre as medidas propostas estão: o pagamento em dobro de benefícios, a prioridade em creches, cotas de contratação em grandes empresas, licença-maternidade de 180 dias e subsídio no transporte urbano. Além disso, a especialista esclarece que “a mãe solo com renda familiar per capita de até meio salário mínimo receberá em dobro benefícios assistenciais destinados a famílias com crianças e adolescentes”.
O projeto também prevê outras medidas como a inserção de “um artigo na Consolidação das Leis do Trabalho para prever o direito a regime de tempo especial, com maior flexibilidade e uso do banco de horas. O texto veda a redução do salário-hora da mãe que aderir à flexibilização da jornada”. A advogada cita que está em tramitação um Projeto de Lei que beneficia chefes de família monoparentais. É um projeto inspirado no Auxílio Emergencial e prevê o pagamento mensal de R$ 1.200 ao responsável.
A advogada também cita o Programa Casa Verde e Amarela, uma espécie de reformulação do Programa Minha Casa Minha Vida. Na nova proposta do programa, há a preferência por mulheres nos contratos e registros envolvendo a aquisição da moradia familiar. A nota é “uma proteção e reconhecimento do papel importante para inúmeras chefes de famílias”, esclarece Elizangela.
Ainda existe um longo caminho a ser percorrido como sociedade para apoiar as mães solo, principalmente as que se encontram em situação de vulnerabilidade social. Um apoio que não deve ser apenas financeiro, mas também preocupado com a saúde mental e o bem-estar dessas mulheres que criam sozinhas uma nova geração de cidadãos.
Victória Vischi
Jornalista e produtora de conteúdo. Fã de cultura POP com interesse em Estudos Culturais, tentando acumular o maior número possível de hobbies nas horas vagas.