Dicas de Mulher
O movimento contra a violência sexual que ganhou notoriedade com a hashtag #MeToo (Eu também) teve relevância global e reverbera ainda hoje na vida e nos direitos das mulheres em todo o mundo. O Dicas de Mulher conversou com profissionais dedicadas ao combate à violência contra a mulher no Brasil para entender mais sobre a onda MeToo.
O que é o movimento #MeToo?
O Me Too é um movimento contra a violência sexual, um problema social que afeta majoritariamente meninas e mulheres, que representam 88% dos casos notificados em 2021. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência sexual é uma questão de saúde pública de escala global e pode ser definida como “qualquer ato sexual ou tentativa de obter ato sexual, investidas ou comentários sexuais indesejáveis, ou tráfico, ou qualquer outra forma, contra a sexualidade de uma pessoa usando coerção”.
No Brasil, o Ministério da Saúde calcula que ocorram em média 500 mil estupros por ano, dos quais apenas 10% são devidamente notificados. A maioria dos casos de estupro e outros crimes de natureza sexual são cometidos contra meninas e, normalmente, os agressores são familiares, namorados ou conhecidos das vítimas.
Contra esse problema endêmico de violência contra a mulher, surge o Movimento Me Too, com o objetivo de ajudar vítimas de violência, seja sexual, patrimonial, psicológica, moral ou outras, a romperem o silêncio e encontrar ajuda. O projeto, que começou nos Estados Unidos, ganhou ramificações no mundo todo por conta de relatos de violência importunação sexual compartilhados nas redes sociais.
O Movimento Me Too, ou “Eu Também”, veio a se tornar um fenômeno internacional devido à onda de denúncias de assédio sexual na indústria cinematográfica de Hollywood, em 2017. Depois disso, mudou permanentemente a percepção social sobre abuso, assédio e importunação sexual, principalmente no ambiente de trabalho, trazendo aos holofotes uma violência de raízes estruturais.
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Mas o movimento não começou naquele ano. Na verdade, ele foi fundado em 2006 pela ativista estadunidense Tarana Burke. A iniciativa começou na intenção de levantar recursos e suportes para o processo de superação da violência por parte de vítimas de abuso. Em 2017, o movimento que era, até então, local, tomou proporções mundiais com a hashtag #MeToo.
O que deu início a toda a repercussão foi o caso de Harvey Weinstein. Antes um dos mais poderosos produtores da indústria cinematográfica do mundo, ele foi demitido após ter sido exposto pelo jornal The New York Times por abusar sexualmente de atrizes com quem trabalhava. A história foi corroborada por dezenas de vítimas, entre elas, Angelina Jolie, Gwyneth Paltrow, Rosanna Arquette, Ashley Judd e Mira Sorvino, e tomou conta dos noticiários do mundo todo.
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Conquistas do movimento
As denúncias e a consequente demissão de Harvey Weinstein deram força às vítimas de violência e ajudaram a impulsionar suas vozes. As ondas desse movimento foram provocadas pela identificação das mulheres com as histórias contadas por essas celebridades. E foi justamente esse sentimento que gerou a hashtag ‘Eu também’, demonstrando que os casos de assédio, abuso e violência sexual não eram isolados e sim uma prática comum e estrutural que marca a realidade de mulheres de todas as idades.
O ato se torna um problema estrutural a partir do momento em que as vítimas são ignoradas ou deslegitimadas. Quando uma mulher tem a coragem de denunciar a violência que sofreu e percebe que nada acontece com seu agressor, é perpetuado um sentimento de impunidade, que empodera o agressor e revitimiza a vítima. A advogada especialista em casos de violência contra a mulher, Clicie Carvalho afirma que às mulheres é necessário um canal de confiança para realizar as denúncias. “Essa confiança é o que cria um elo, onde as mulheres conseguem denunciar em canais como estes, justamente porque sabem que não vão ser revitimizadas, não vão duvidar delas…”, comenta a especialista.
O movimento #MeToo contou com a contribuição de milhares de mulheres nas redes sociais. Posteriormente, reverberou para denúncias formais fora da internet. Para a pesquisadora e ativista Tânia Tait, muitos fatores contribuem para isso, “a necessidade de compartilhar a dor com outras mulheres e a possibilidade de denunciar sem se expor presencialmente”. Além disso, Tait acredita que as denúncias ajudaram a empoderar mulheres silenciadas, “ao ser publicizado a existência de abuso e agressão sexual, [elas] viram uma forma de denunciar e compartilhar, se sentiram empoderadas e protegidas para realizar as denúncias”, afirma.
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Para a pesquisadora, os movimentos sociais, como o Me Too e muitos outros, têm um papel relevante de chegar aonde, muitas vezes, o Estado não chega. Ela destaca especialmente o papel do movimento feminista como um todo em levantar bandeiras pelo fim da violência contra a mulher e “em todas as situações que prejudicam a vida das mulheres em todos os cantos do mundo”.
O movimento #MeToo serviu para, ademais, levantar o assunto da violência sexual na sociedade. Em 2017, de acordo com o dicionário norte-americano Merriam Webster, houve um aumento de 70% nas pesquisas da palavra “feminismo” em relação ao ano anterior. Como um reflexo, de forma direta ou indireta, destacamos a criação da Lei da Importunação Sexual no Brasil, um ano depois do acontecido, em 2018.
A lei nº 13.718 tipifica como crime qualquer toque ou exposição sexual sem consentimento da pessoa para motivos de prazer sexual próprio, ou de outra pessoa. É um passo importante que ajusta as noções sociais de consentimento e abuso. Essas foram algumas das práticas de Harvey Weinstein contra suas funcionárias, que acarretaram sua condenação e pena de 23 anos.
Me Too Brasil
O Me Too Brasil, nasceu em parceria com o Projeto Justiceiras, como um braço da organização, focado em lidar com as denúncias de agressão, abuso, estupro, importunação e assédio sexual. De acordo com a fundadora e advogada especialista em violência de gênero, Marina Ganzarolli, o projeto é pioneiro no Brasil, por ser o primeiro a se concentrar em crimes de violência sexual.
“Uma equipe 100% Me Too Brasil”, há um ano conta com seus próprios canais de denúncia e suas próprias voluntárias. Marina relata que sentia falta de uma organização que trabalhasse com crimes fora do âmbito familiar, como por exemplo, em casos de assédio no trabalho, na rua, nos serviços públicos ou espaços privados. “[Fundamos] o Me Too Brasil, especificamente com essa missão: apoiar vítimas e sobreviventes de violência sexual a romperem o silêncio”, diz a advogada.
A instituição foi idealizada para atender totalmente a vítima e suas necessidades,” independentemente de ela querer fazer uma denúncia criminal ou não, estamos aqui para apoiá-la”, afirma Marcela. O objetivo do projeto é acolher as mulheres de forma individualizada e humana. Atualmente, o Me Too Brasil conta com dois canais, explica a profissional. O primeiro, é o atendimento inicial, conta com apoio socioassistencial, psicológico e jurídico. O segundo canal é um canal de “desabafo”, como define a fundadora: “É algo muito importante, que dá a oportunidade às vítimas de contar a sua história”. Os relatos são publicados somente com o aval das autoras em questão.
“Nosso atendimento inicial busca acolher e informar os direitos da vítima, as possibilidades de ação, entender o que aquela vítima está buscando, quais são as necessidades dela, fazer uma avaliação de risco da situação para pensar uma gestão de proteção, dando segurança de acordo com as necessidades da pessoa.”
– Me Too Brasil.
O Me Too Brasil atua no Brasil há 2 anos e já atendeu mais de 250 vítimas e sobreviventes de crimes de violência sexual. O projeto conta com psicólogos e psiquiatras, assessores jurídicos, advogados e outros profissionais preparados para lidar com essas denúncias. A advogada reforça que os crimes de violência sexual no Brasil são extremamente subnotificados, “8 em cada 10 mulheres nunca chegam a denunciar”.
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Essa subnotificação pode ter diversos fatores, “o estigma, a falta de confiança no sistema, a autoculpabilização da vítima, o menosprezo das autoridades e até da sociedade com os crimes de natureza sexual” são algumas das causas que Marina aponta. Apesar disso, ela afirma que o Projeto Me Too tem, hoje, mais denúncias de estupro do que algumas delegacias especializadas nestes crimes. Por conta dessa demanda, o projeto está sempre recebendo e treinando novas voluntárias.
A violência doméstica também sofre com uma subnotificação de cerca de 50% de acordo com uma pesquisa feita pelo DataFolha em 2020. É esta a realidade que o Projeto Justiceiras pretende combater. Nos 3 anos do projeto, já foram ajudadas quase 15 mil mulheres por mais de 15 mil voluntárias. Trata-se de uma grande rede de apoio que aproxima mulheres em situação de vulnerabilidade de voluntárias especializadas.
Clicie, gestora do projeto, destaca a importância de projetos como Justiceiras e o Me Too Brasil, considerando que 50% das denúncias recebidas são feitas primeiramente para o projeto, “são mulheres que nunca fizeram denúncias em outro lugar”. No entendimento da especialista, isso acontece porque há um acolhimento e acompanhamento que as mulheres não encontram em outros canais.
Milhares de mulheres se uniram ao redor do mundo para falar sobre a violência sexual, por meio da hashtag #MeToo. O problema, que afeta desproporcionalmente meninas e mulheres, tem sido tratado por organizações como o Me Too Brasil e muitas outras que oferecem apoio e acolhimento especializado para vítimas e sobreviventes de violência.
A violência contra a mulher é uma realidade ainda invisível no Brasil, se analisada a subnotificação dos casos. Seja por meio de ameaças, agressão verbal, violência psicológica, física ou sexual, a violência de gênero precisa ser denunciada e combatida socialmente por todos nós.
Canais de denúncia
O movimento #MeToo ajuda a potencializar as vozes de sobreviventes de violência sexual e os projetos criados a partir dele se apresentam como uma ponte entre a vítima e a justiça. Se você ou alguém que você conhece é, ou foi em algum momento, vítima de violência sexual ou doméstica, pode entrar em contato com os canais oficiais de denúncia através dos órgãos policiais, Delegacias da Mulher, no Disque 100 e no 180, ouvidorias do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Alice Loureiro
Comunicóloga. Editora e redatora do Dicas de Mulher.