Sociedade

Mulher trans: a identidade para além do gênero imposto ao nascer

Dicas de Mulher

Atualizado em 19.05.23
push pixel

Nem toda mulher menstrua ou tem útero. Uma mulher trans designa uma pessoa que o sexo foi identificado como masculino no nascimento, mas se identifica como feminino. Para entender mais, a mulher trans Fillipa Louro e o pesquisador de gênero de uma perspectiva LGBTQIA+ Joe Veloso compartilham conhecimento sobre o tema.

O que é mulher trans?

Envato

Veloso inicia explicando ser necessário entender o que é transsexualidade, pois “estamos lidando com uma identidade de gênero que opera com a não conformidade em relação ao gênero que nos é imposto por nascença, conforme o nosso sexo biológico”.

Assim, pessoas trans não se identificam com a identidade de gênero imposta a partir do sexo de nascença. Essas identidades são inúmeras, mas incluem não-binários e binários, como as mulheres trans.

Relacionadas

Publicidade

Como saber se você é uma pessoa trans?

O processo de identificação como uma mulher trans é particular para cada pessoa e exige “uma certa bagagem de autoconhecimento e compreender as relações de gênero que permeiam a sociedade na qual vivemos”, explica Veloso. Para exemplificar, Louro compartilha sua história.

Ela relata que “desde pequena eu me via ‘deslocada’ das outras crianças. Eu observava as outras crianças e não me sentia representada em nenhuma delas”. Quando tinha seis anos já se entendia como uma menina, “mas não sabia como expor isso para as outras pessoas”. Sentimento que só se tornou mais forte com o passar do tempo, “conforme fui crescendo, cada vez mais esse sentimento de aversão se intensificava e o desejo de me assumir trans era maior”, recorda.

Com o passar dos anos, tanto seu autoconhecimento quanto sua compreensão sobre pessoas trans avançaram. Louro também explica que se assumir como mulher trans não foi fácil, pois “eu sabia que a vida de mulheres como eu não era fácil e que a transfobia fazia parte do dia a dia. Isso sempre me amedrontava, por isso o apoio que tive da minha família foi muito importante para que eu pudesse externalizar a mulher que eu sempre fui”.

Existe idade para se identificar como mulher trans?

Canva

Assim como Louro, a não identificação com o gênero imposto ao nascimento pode se apresentar logo no início da vida. “Muitas crianças se sentem desconexas com o gênero atribuído ao seu nascimento, algumas até começam a questionar e comparar seu corpo com o gênero no qual se identifica. Crianças trans existem e cada uma delas amadurecerá seu autoentendimento conforme seu processo pessoal”, explica.

Em outros casos, a desconexão com o gênero atribuído se manifesta na adolescência. “Muitas pessoas trans acompanham seu corpo mudando na puberdade e adquirem disforias corporais. Não são todas, porém o adolescente pode desenvolver repulsa com seu corpo nessa fase, querendo que o corpo tivesse passado pela puberdade do gênero oposto daquele atribuído a ela em seu nascimento”.

Ainda, a codescoberta da transsexualidade também pode se manifestar na vida adulta. Louro explica que “independente da idade e do processo de autoconhecimento de cada um, toda pessoa trans foi uma criança trans. Afinal, essas pessoas nascem trans, mas cada uma terá sua própria jornada de reconhecimento”.

Publicidade

Sou uma mulher trans?

Como parte do processo de autoconhecimento, Veloso propõe a seguinte reflexão: “a forma como eu me vejo e entendo minha identidade de gênero corresponde com ao gênero imposto ao meu sexo biológico? Se a resposta for não, comece a pensar e discutir sobre transexualidades e tudo que ela engloba”.

Lembre que “quando falamos de gênero, devemos partir do princípio que ‘ser homem ou mulher’ é algo que aprendemos socialmente”. Para entender a transsexualidade, é preciso desassociar o gênero da identificação biológica compreender enquanto construção social.

Por fim, Veloso recomenda “a leitura das obras ‘Um Corpo Estranho: Ensaios Sobre Sexualidade e Teoria Queer’ e ‘O Corpo Educado: Pedagogias da Sexualidade’, ambos para entender mais sobre gênero e sexualidade”.

Dúvidas sobre ser mulher trans

Como a transsexualidade é uma identidade ainda marginalizada e alvo de preconceito na sociedade, muitas dúvidas e falsas concepções permeiam o assunto. Por isso, os especialistas respondem às perguntas mais comuns a respeito do tema:

Dicas de Mulher – Qual é a diferença entre travesti e mulher trans?

Joe Veloso – Ambas se encontram no espectro da transexualidade. O termo e a vivência ‘travesti’ são realidades latino-americanas, já o termo e a vivência ‘trans’ são, de certa forma, globais. Assim, trans é aquela que está no espectro binário e se reconhece na mulheridade, já a travesti não pertence ao espectro binário da identificação. Antigamente, a palavra ‘travesti’ era utilizada como uma forma de insulto, mas ela se tornou uma forma de identificação. Agora, o termo foi apropriado por parte da população trans como forma de resistência e força.

Qual é a diferença entre mulher trans e drag queen?

Apesar de dialogar diretamente com as características impostas aos gêneros, Drag Queen é uma performance artística que pode ser desenvolvida por qualquer pessoa: hetero, homo, homem, mulher, trans ou cisgênero. Diferentemente das pessoas trans, a Drag é uma personagem, que desaparece com uma boa dose de água e sabão. A transexualidade é uma vivência diária, uma forma de identificação e não uma performance artística.

Publicidade

Para ser uma mulher trans precisa fazer cirurgia?

Fillipa Louro – Para ser uma mulher trans é preciso se identificar enquanto mulher. Assim, não optar por uma cirurgia plástica ou até mesmo hormônio-terapia não torna uma mulher trans menos mulher. Cada mulher trans tem um desejo pessoal daquilo que deseja para o seu próprio corpo. Muitas mulheres trans e travestis optam por cirurgias plásticas para aliviar algumas disforias corporais, mas não como forma de validar sua mulheridade para a sociedade.

Dizer a uma mulher trans que ela nem parece trans é ofensivo?

Sim. É ofensivo porque inferioriza e invalida sua identidade enquanto mulher, como se parecer trans fosse algo errado. Quando usamos esse discurso, dizemos a essas mulheres precisam ser iguais cis para parecerem mulheres. E afinal, o que seria se parecer trans, quando temos inúmeros modelos de mulheres em nossa sociedade?

O que é indelicado perguntar a uma mulher trans?

É indelicado fazer perguntas muito pessoais, como qual órgão genital essa mulher teria, se ela tem vontade de fazer alguma cirurgia plástica para se ser mais ‘feminina’. Uma pessoa cisgenera, gostaria que alguém rotulasse seu corpo e tirasse dúvidas tão intimas e pessoais sobre seu corpo? Ninguém quer responder perguntas tão constrangedoras e íntimas apenas para tirar a curiosidade do outro. O mesmo acontece com mulheres trans e travestis.

Toda mulher trans é heterossexual?

Nem todas as mulheres trans são heterossexuais, ou sejam, se atraem somente por homens. Algumas mulheres trans se interessam por outras mulheres, sejam elas cis ou trans. Outras se interessam por ambos os gêneros, outras não sentem atração por ninguém.

É preconceituoso relacionar mulheres trans e travestis a profissionais do sexo?

Nem todas as mulheres trans e travestis são garotas de programa. Isso são rótulos que rodeiam a nossa existência enquanto mulheres. Pensar que todas somos garotas de programa é perpetuar que o único lugar de sobrevivência para nossos corpos é ser marginalizados na prostituição. Atualmente, nós estamos ocupando diversos lugares que antes não foram ocupados, ainda assim com muita luta e repressão. Se a maioria ainda sobrevive da prostituição, é porque ainda continuamos sendo sexualizadas e limitas de melhores oportunidades.

Cirurgias de readequação sexual tornam alguém mais mulher?

Uma mulher trans que não opta por uma cirurgia de readequação sexual não é menos mulher. Isso diz sobre como ela gosta de se ver enquanto mulher.

Para finalizar, Veloso complementa que “as sexualidades são universos extremamente amplos e em constante desenvolvimento, poderíamos passar horas debatendo sobre e ainda não conseguiria levantar todos os questionamentos possíveis”.

10 mulheres trans famosas para acompanhar

Representatividade importa e, apesar dos desafios, diversas mulheres trans tem conseguido ocupar posições de destaque na mídia, seja no mundo da moda, da música ou da atuação. Confira uma seleção de 10 mulheres trans famosas para acompanhar:

1. Hunter Schafer

Modelo e atriz estadunidense, Hunter Schafer é conhecida pelo seu papel como Jules, na série ‘Euphoria’. Assim como Hunter, a personagem Jules é uma mulher trans. Na época do lançamento da produção, a atriz falou à revista Variety sobre a importância de personagens trans. “Precisam existir mais papeis em que pessoas trans não estão lidando apenas em serem trans, pois elas são trans enquanto lidam com outros problemas. Somos muito mais complexos do que apenas uma identidade”.

2. Daniela Vega

A atriz chilena Daniela Vega é reconhecida por estar quebrando barreiras para a comunidade trans e aproximando o cinema trans do mainstream. Em 2018, Vega se tornou a primeira pessoa publicamente trans a apresentar uma cerimônia do Oscar. Com diversos trabalhos importantes na carreira, seu maior destaque foi por sua atuação no filme ‘Uma Mulher Fantástica’, de Sebastián Lelio, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2018. Em declaração a Vogue, ela falou sobre a importância da arte, “é a chave para todos os bloqueios que ainda temos”.

3. Liniker

Primeira cantora transsexual a protagonizar show em um dos dois palcos principais do festival Rock In Rio, Liniker também é compositora, atriz e artista visual. Brasileira, nascida em Araraquara (SP), a artista se emocionou em sua apresentação no festival. “Estou emocionada por entregar um trabalho com dignidade e excelência para vocês. Dizem que pessoas pretas, travestis, gays não podem, mas a gente pode. E hoje é sobre excelência”.

4. Laverne Cox

Primeira mulher trans a ter uma versão da Barbie inspirada nela, Laverne Cox foi homenageada pela Mattel com uma boneca comemorativa ao seu aniversário de 50 anos, em 2022. A atriz que nasceu no estado do Alabama nos Estados Unidos, possui uma carreira marcante com seu primeiro papel de destaque na série ‘Orange is The New Black’. Apesar do grande talento, Cox disse em entrevista à Forbes que “como uma pessoa negra e trans, preciso trabalhar duas, três, quatro vezes mais duro. Mas isso nunca me deu raiva. Aceitei que tenho que trabalhar mais”.

5. Laerte

A cartunista e chargista brasileira de renome, Laerte Coutinho, se assumiu mulher trans aos 58 anos. Ela falou sobre o seu processo de autoconhecimento e aceitação em uma entrevista ao programa ‘Provoca’ de Marcelo Tas, em abril de 2022. “Fiquei me enrolando por trinta e tantos anos. Eu sabia que eu gostava de homem, mas fiquei assustada com a possibilidade de ser gay, de ser viado, de ser bixa, de ser invertido, sabe? Isso tudo era uma coisa muito assustadora para mim, muito peso”.

6. Kim Petras

A cantora alemã Kim Petras se tornou a primeira artista trans a alcançar o número 1 nas paradas musicais dos Estados Unidos, pela colaboração com o cantor britânico Sam Smith, na música ‘Unholy’. Ela contou ao jornal Die Zeit que aos dois anos já entendia sua identidade de gênero. “Eu sempre me senti como uma garota. Eu odiava meu corpo quando tinha cinco anos”.

7. Gabrielle Gambine

Gabrielle Gambine é modelo e atriz, muito conhecida por seu papel em ‘Verdades Secretas’. Cresceu em um ambiente que a conferiu liberdade para expressar seu gênero. Sobrinha dda modelo transsexual Roberta Close, Gambine quer conquistar o próprio sucesso. “O nosso parentesco e transexualidade foram abordados das formas mais desrespeitosas que existem. Não ligo de ser associada, é minha tia, vai acontecer. Mas ela sempre me ensinou a buscar meus próprios passos, e eu nunca quis usar isso para me promover”, contou em entrevista ao Terra.

8. Lana Wachowski

(Divulgação/Netflix)

A diretora de cinema Lana Wachowski e sua irmã Lily Wachowski são trans e reconhecidas pela criação de produções maravilhosas, como a saga de filmes ‘Matrix’ e a série ‘Sense8’. Em 2022, a dupla leiloou itens de sua coleção pessoal, como originais de filmes e séries e até prêmios, em benefício de jovens trans.

9. Lea T

Filha do ex-jogador Torinho Cerezo, Lea T é uma modelo trans brasileira de renome internacional, uma das mais bem sucedidas do mundo da moda. Ela falou em entrevista a Vogue sobre as dificuldades de ser uma figura pública trans e sobre o apoio de sua família. “Sou de uma geração em que ser uma mulher transexual pública foi um desafio para mim e para eles. Apesar das discussões, normais em qualquer família, tem troca, carinho e afeto, legado deixado pelo meu avô”.

10. Mj Rodriguez

A primeira pessoa trans a ganhar um Globo de Ouro por melhor atuação, Mj Rodriguez arrasou na sua atuação na série ‘Pose’, em 2022. Ela celebrou a conquista em suas redes sociais e falou sobre a importância de abrir portas para outros jovens talentosos com esse prêmio. “Eles verão que uma jovem garota latina negra de Newark, New Jersey, que tinha um sonho, mudar as mentes que os outros fariam com amor. O amor vence. Para os meus jovens bebês LGBTQAI+, estamos aqui. A porta está aberta, agora alcancem as estrelas!”.

Essas são apenas algumas das mulheres trans que tem conquistado espaço na mídia. O sucesso dessas pessoas ainda é uma luta cheia de desafios impostos pelo preconceito. Entretanto, cada vez mais existem trans vencendo essas barreiras e abrindo portas para as novas gerações.

Vídeos e relatos sobre a mulher trans

Conhecer outras perspectivas pode ser útil para entender a pluralidade de histórias na descoberta da transsexualidade. Confira a seleção de vídeos cheios de relatos importantes:

Se descobrindo mulher trans

O processo de autoconhecimento é particular para cada pessoa. Nesse vídeo, Nicky Sirizolli compartilha um pouco mais sobre a sua história e como ela se descobriu como mulher trans. Perceba como as descobertas diferem, mas todas exigem desconstrução.

Relatos de transição tardia

Náthiele de Oliveira é uma criadora de conteúdo trans que abre espaço para compartilhar relatos anônimos de pessoas trans. Nesse vídeo, ela compartilha uma história de transição tardia e a falta de apoio que muitas mulheres encontram ao fazer a transição em uma fase mais avançada da vida.

Terapia hormonal

A produtora de conteúdo Julia Orrico compartilha suas experiências com a terapia hormonal e a importância do acompanhamento médico. Ela explica que no começo misturava muitos hormônios, achando que conseguiria resultados mais rápidos. Ela fez isso sem acompanhamento e só depois procurou um médico para regular o tratamento.

Dicas para o início da transição

O resultado da terapia hormonal é lento e exige paciência. Natália Rosa compartilha dicas, baseadas em sua experiência de transição como mulher trans, para outras pessoas trans lidarem com o primeiro ano de transição.

Confira também essa matéria sobre agênero para entender mais sobre a pluralidade de identidades que não cabem na caixinha da binariedade.

Jornalista e produtora de conteúdo. Fã de cultura POP com interesse em Estudos Culturais, tentando acumular o maior número possível de hobbies nas horas vagas.