Três mulheres que participam de batalhas de RAP contam suas experiências ocupando ambientes predominantemente masculinos
A cultura das batalhas de rimas surgiu em conjunto com o nascimento do RAP, na costa leste dos Estados Unidos, na década de 1970. Já a popularização no cenário nacional brasileiro data da segunda metade da década de 1990, impulsionada pelo sucesso do grupo Racionais MC’s.
No começo dos anos 2000, houve um enfraquecimento do RAP brasileiro, que voltou a ganhar força somente nos últimos anos. Com a retomada dessa cultura, as batalhas de rima também receberam maior destaque por todo o Brasil, com competições menores e locais, além de eventos que atraem artistas nacionais. Elas são encontros tradicionais da cena do hip-hop, onde vemos dois artistas de RAP duelarem entre si por meio de rimas improvisadas.
Dependendo da organização da batalha, as rimas podem ser cantadas em cima de um ritmo musical colocado por um DJ ou a capela. Cada participante costuma ter cerca de 30 segundos para realizar sua performance, intervalo de tempo que pode voltar a ser repetido de duas a três vezes em caso de empate e que pode variar de acordo com a quantidade de inscritos no evento.
Ainda que, na maioria dos casos, as inscrições sejam abertas para todos, como em diversas áreas da sociedade, as batalhas de RAP são espaços predominantemente ocupados por vozes masculinas. No entanto, as mulheres buscam cada vez mais combater o silenciamento de suas vozes e conquistar esses espaços. O Dicas de Mulher conversou com 3 mulheres que participam de batalhas de RAP e compartilharam suas experiências.
Como começaram
A cantora e compositora Maria Olímpia Venezian Herentiechel, mais conhecida como Venezian, começou a escrever poesias e fazer freestyle aos 10 anos. Ela conta que sua primeira participação em uma batalha de RAP foi em 2018: “sempre via as batalhas e tinha vontade, acho que o que me incentivou a começar foi que a primeira batalha foi só com mulheres. Sabemos que, como em várias outras coisas, é uma área predominantemente masculina, e vi [esse espaço de mulheres] como uma oportunidade de ver se realmente iria gostar de batalhar, para além do ver”.
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Ela explica ainda que participar de uma primeira batalha apenas voltada para mulheres foi importante para sua experiência, permitindo que se sentisse mais confortável: “comecei a batalhar mesmo que fossem só homens, foi uma oportunidade que me fez dar continuidade, independentemente do sexo de quem iria batalhar”.
Ligia Braga, cujo nome artístico é Cleópatra, conta que, no seu caso, começou a frequentar as batalhas de RAP aos 14 anos, porque conheceu os eventos no colégio e um amigo a chamou para ir. No entanto, ela iniciou sua participação nas batalhas de rima sem planejar: “na minha primeira batalha, colocaram meu nome sem eu saber. Chamaram meu nome no meio da batalha, pra rimar, e aí eu fui”.
Apesar da relutância em começar, a experiência surpreendeu Braga. “Foi uma felicidade muito grande, eu lembro até hoje da satisfação que eu senti quando eu rimei pela primeira vez”, recorda.
Já Luisa Krauze, cujo nome artístico é Lubs, descobriu o mundo do hip hop por meio das danças urbanas, aos 14. “Fui descobrindo essa cultura e percebendo que era onde eu me sentia livre, o que bastou apenas mais alguns passos para entender que minha poesia era RAP!”. No entanto, ela recorda que demorou a entrar em uma batalha: “Foi muito tempo fazendo improviso nos rolês, entre amigos e tudo mais, até que um dia eu senti que poderia dar o primeiro passo e entrei na minha primeira batalha: melhor resultado, né? Ganhei”.
Mulheres em um espaço muito masculino
Venezian afirma que participar desses espaços sendo mulher “não é fácil, mas é necessário. Por mais que a predominância seja masculina, se eu deixar de fazer, se eu deixar de ir a lugares por conta desses estereótipos, eu nem saio de casa”.
Lubs concorda e reflete que, para ela, “é apenas um reflexo do que vivemos em qualquer outra instância da vida. Somos tratadas diferente no trabalho, na família, em círculos sociais, em todo o lugar que vamos. E, sim, somos tratadas diferente porque a maioria deles ainda não sabe lidar com a disputa versus uma mulher. Sempre se perdem por medo ou desrespeito. Mas hoje vejo que já fiz escola, pois vários MC’s da minha cidade hoje sabem rimar de igual para igual contra uma mulher, porque aprenderam comigo”.
Cleópatra conta que, em sua experiência em espaços de RAP e de hip hop, 95% das pessoas que frequentam os eventos são homens “eu acho que essas diferenças podem violentar, podem machucar e, assim, que elas se manifestam muitas vezes pela desvalorização”.
A importância de ocupar esses espaços
Venezian incentiva outras mulheres a ocuparem esses ambientes “mulheres que gostam, mulheres que amam o que fazem, tem que ter esse pensamento e não deixar de fazer o que gostam por ninguém, muito menos por algum homem. Por mais difícil que seja, é necessário irmos a esses espaços para quebrar os estereótipos. É todo um processo, às vezes doloroso, mas necessário”.
Ao ocupar esses espaços, apesar dos desafios, mulheres como Venezian, Lubs e Cleópatra mostram para outras garotas que é possível seguir seus sonhos e contrariar os números. Elas levam representatividade que passa a mensagem de que não é impossível chegar ali.
Cleópatra fala sobre a importância dessa representatividade “principalmente [para] crianças pretas, meninas pretas, mulheres pretas, a questão da representatividade de você ver um semelhante fisicamente, com seu biotipo, vindo do mesmo lugar que você veio, que passou pelas minhas coisas que você passou, ver ela em um certo lugar que você admira é muito importante para você também entender que você pode estar lá”.
Ainda são poucas as mulheres que participam das batalhas de RAP. Por isso Lubs destaca a importância da continuação da presença de mulheres nesses ambientes e de atrair mais participantes. “É preciso ocupar para que continue sendo ocupado por nós. Mas com certeza precisamos de mais, para que ao mesmo tempo que ficamos mais fortes, quanto mais mulheres, a atmosfera também fica mais leve para nós”.
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Como acontece na sociedade, mulheres não são o único grupo pouco representado no cenário das batalhas de RAP. Cleópatra conta que, se a representação de pessoas que se identificam com o gênero feminino já é pequena, quando se trata de pessoas LGBTQIA+, é menor ainda. Ela narra que, em sua experiência, presenciou poucas pessoas LGBTQIA+ se apresentando, “e todas que eu presenciei foram potentes, incríveis e muito subjugadas, violentadas”, refletindo a mesma dura realidade que é encontrada na maioria dos ambientes da sociedade atual.
Para além da importância representativa e social, Cleópatra compartilha que rimar também é, para ela, “muito importante no quesito de cura mesmo, das minhas questões, de me encontrar, de me fortalecer, de me expressar, é como se eu tivesse encontrado minha maneira de me comunicar e falar o que eu sinto, o que eu penso, de me empoderar”.
Experiências marcantes em suas carreiras
Quando se trata de experiências que as marcaram, o reconhecimento por parte de pessoas que admiram a arte dessas mulheres é sempre lembrado. Venezian conta que “apesar de não desistir, tem momentos que estamos desanimadas e palavras de apoio como essas são muito importantes e gratificantes, ainda mais quando vêm de mulheres”.
“É muito importante a gente estar nesse espaço tanto para inspirá-las como também para nos empoderar, quebrando esses estereótipos e rótulos absurdos” complementa Venezian.
O reconhecimento de sua arte também marcou Lubs. Ela recorda de uma situação específica em que foi buscar alguns amigos após uma batalha de RAP, em um distrito pequeno chamado Floriano, anexo à cidade de Maringá, no estado do Paraná. “Quando cheguei lá, me surpreendi porque eu tinha muitas fãs! As meninas ficaram emocionadíssimas ao me ver e aquilo foi um choque pra mim, como meu som e meu freestyle estavam marcando pessoas que eu nem imaginava. Foi muito especial!”.
Uma situação semelhante marcou Cleópatra, após participar e vencer uma etapa de uma batalha de RAP na Zona Norte de Londrina, a artista foi parada por uma menina negra que deveria ter uns 6 ou 7 anos. Na ocasião, ela recorda que a garota segurou sua mão: “aí, ela falou pra mim que ela queria ser igual a mim e que eu era muito linda e que ela queria ser igual a mim, que ela queria fazer o que eu fiz”.
Cleópatra incentivou a garota a ser ela mesma e recebeu um abraço da criança. “Acho que aquele abraço, aquele momento, me fez entender muita coisa. Me fez entender a dimensão, o quão grande que é para algumas pessoas”. Ainda que seja difícil atingir uma quantidade maior de pessoas, Ligia finaliza dizendo que “trazer um pouco de conforto para pelo menos uma pessoa: acho que esse é o objetivo”.
Ter mulheres ocupando espaços socialmente direcionados a homens é uma conquista que merece ser relembrada sempre. Mudar padrões sociais é um desafio enorme, mas o primeiro passo precisa ser dado. Um cenário que vem sendo reconstruído é dos games. Ser mulher gamer ainda é um desafio, porém, com luta e reconhecimento isso pode ser mudado. Confira nossa pauta sobre o assunto e fique bem informada.
Victória Vischi
Jornalista e produtora de conteúdo. Fã de cultura POP com interesse em Estudos Culturais, tentando acumular o maior número possível de hobbies nas horas vagas.