Sociedade

Racismo: como essa violência se tornou estrutural no Brasil

Dicas de Mulher

Atualizado em 11.10.23
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Não é de hoje que a questão racial vem sendo discutida no Brasil. Entretanto, ela tomou uma nova dimensão na pandemia, onde os entraves da Covid-19 foram acentuados em um determinado grupo, em sua maioria, composto por pobres e negros. A advogada especializada em Direito Civil, Maria Eduarda Santos, e a antropóloga indígena, Lidiane Adjú Kariú, explicam como o racismo se manifesta e como é possível combatê-lo.

O que é racismo?

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Para explicar o racismo, a antropóloga Adjú Kariú costuma “utilizar a conceituação de Silvio Almeida. De acordo com esse autor, ‘o racismo é uma forma sistemática de discriminação, que tem a raça como fundamento, e se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes, culminando em desvantagens ou privilégios, a depender do grupo racial’. Isso porque o racismo tem uma dupla ação, ao mesmo tempo em que restringe ou nega direitos para pessoas racializadas, ele concede vantagens às pessoas não racializadas”.

Nesse sentido, o racismo é um conjunto de práticas de determinada raça/etnia que, ao estar em uma posição de favorecimento social, acaba deixando outra raça em desfavorecimento.

A origem do racismo

Segundo Adjú Kariú, “o racismo tem origem na invasão, colonização, bem como na escravização dos povos nativos das Américas e dos povos negros”. Para exemplificar, a antropóloga parafraseia uma ideia muito presente nos estudos coloniais: “o colonizador europeu nominou e significou o ‘outro’ utilizando a categoria de raça. Assim, ele justificou sua superioridade e dominou os povos habitantes desse novo mundo”. Em resumo, o colonizador se elegeu como um ser dotado de humanidade e, ao mesmo tempo, destituiu o ‘outro’ de sua humanidade.

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Sendo uma construção histórico-social legitimada pelas estruturas de poder, entre elas, governo e religião, e embasada em uma ideia de superioridade. O racismo é impiedoso, violento e se manifesta de diferentes tipos. Entenda a seguir.

Tipos de racismo

racismo

No livro “Racismo Estrutural”, o pesquisador Silvio de Almeida traz três conceituações para os principais tipos de racismo presentes na sociedade:

  • Racismo Individual: de acordo com a concepção de Almeida, o racismo individualista é “uma espécie de “patologia” ou anormalidade. Ele é praticado por um indivíduo ou um grupo isolado. “Uma ‘irracionalidade’ a ser combatida no campo jurídico por meio da aplicação de sanções civis – indenizações, por exemplo – ou penais”.
  • Racismo Institucional: “os conflitos raciais também são parte das instituições. Assim, a desigualdade racial é uma característica da sociedade não apenas por causa da ação isolada de grupos ou de indivíduos racistas, mas fundamentalmente porque as instituições são hegemonizadas por determinados grupos raciais que utilizam mecanismos institucionais para impor seus interesses políticos e econômicos”. O conceito ofertado por Almeida dá uma visão ampla sobre como o racismo institucional opera na sociedade.
  • Racismo Estrutural: “o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do mundo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares.

Com base na conceituação de Silvio Almeida, é possível perceber que o racismo está presente em diferentes esferas da sociedade. Além disso, ele opera em camadas, algumas mais visíveis e outras invisíveis, porém, todas elas com efeitos devastadores.

Racismo é crime: entenda a lei

O crime de racismo é a discriminação social contra uma raça, cor, etnia e religião, fundamentada em uma ideia de superioridade. Segunda a advogada, ele é “disciplinado pela Lei n° 7.716/1989, que o define como um crime inafiançável e imprescritível”. Em outras palavras, não há uma data de validade, a denúncia pode ser realizada anos após o ato criminoso e ele deverá ser julgado.

“Além disso, a Constituição Federal Brasileira de 1988, no art. 3°, inciso XLI, traz que: ‘constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação’ afirmando a proibição”, informou Maria Eduarda Santos.

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Para o crime de racismo, há duas penas: reclusão de um a três anos com multa; e reclusão de dois a cinco anos com multa. É importante denunciar, compartilhar a informação e deixar cada vez mais claro que os tempos estão mudando. Não há espaço para o racismo!

Existe racismo reverso?

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O ‘racismo reverso’ é um termo usado para designar supostos casos de preconceito contra brancos. Porém, muitos ativistas e estudiosos do movimento negro apontam que essa é uma forma de deslegitimar ou se apoderar do lugar das vítimas. Além disso, é uma forma de desvirtuar o foco do efetivo enfrentamento as desigualdades sociais presentes no mundo.

Como aponta a antropóloga indígena, “o racismo reverso não existe, pois o racismo é uma manifestação de poder que tem origem histórica na colonização, subordinação, escravização de pessoas indígenas e negras. No Brasil, a pessoa branca não é impedida de ingressar em restaurantes e usar determinados elevadores em razão da cor de sua pele, assim como não é morta pela polícia por ser confundida com um bandido”. Essa fala está relacionada com um tratamento racista ainda presente na sociedade.

Santos também concorda que “o racismo reverso não existe, pois determinadas raças, como é o caso dos negros e indígenas, sofreram e continuam sofrendo baixa oportunidade de trabalho, moradia e pouca melhoria na condição financeira. Além do mais, esses grupos foram submetidos a uma escravidão que durou muitos anos”.

A discussão em volta desse termo é mais do que inapropriada. Ao invés de racismo reverso, há um racismo aversivo (conceito criado por Joel Kovel), isto é, pessoas brancas dizem que não são racistas, porém suas ações mostram outra realidade.

O mito da democracia racial no Brasil

“O mito da democracia racial, embora antigo, foi apresentado formalmente ao Brasil pelo sociólogo Gilberto Freyre, no livro ‘Casa-Grande e Senzala’. Freyre buscava compreender as características e as ramificações de povos e culturas que constituíam a nação brasileira. O autor adota uma percepção romantizada e acrítica da colonização e da escravidão, dois processos históricos violentíssimos que marcam a formação social no Brasil. Sua obra reforçou o que ficou conhecido como o mito da democracia racial”, explicou a antropóloga.

Hipoteticamente, a democracia racial é um país sem racismo, garantindo a igualdade e a equidade de direitos para todos, independentemente da cor da pele ou origem étnica. Entretanto, não passa de uma hipótese que só existe no papel. Pesquisadores apontam que houve foi uma inversão da realidade brasileira sobre suas relações raciais.

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No Brasil, o mito da democracia racial é uma farsa historicamente construída. Desde a abolição da escravatura, construiu-se uma ideia de país acolhedor que abraça todas as raças, quando, na verdade, o privilégio branco sempre existiu. Quem habita os grandes centros urbanos e quem é a maior vítima das ações policiais? Reflita.

Como pessoas não racializadas podem contribuir para a luta antirracista

Citando Ângela Davis: “não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. Essa luta é de todos. Para a antropóloga, pessoas brancas, utilizando seus lugares de poder e privilégio, precisam adotar o antirracismo como uma forma de vida. A prática deve ser diária, tanto no local de trabalho, no cotidiano familiar, em uma roda de amigos quanto em outros lugares.

No livro “Pequeno Manual Antirracista”, a filósofa Djamila Ribeiro também aponta que ser antirracista é a melhor forma de contribuição. Aliás, esse livro é uma excelente indicação de leitura sobre o tema. Lançado em 2019, seu conteúdo é didático, urgente, escrito para ser entendido por todos os públicos.

A filósofa também tem estudos sobre o “lugar de fala“, outra prática que você pode adotar. O conceito é sobre pessoas assumindo a narrativa de suas histórias. Por exemplo, em roda de conversa sobre racismo, uma pessoa branca domina o discurso enquanto uma pessoa negra escuta. Há um silenciamento nessa prática. Não é sobre dar espaço e não é sobre deixar o outro falar. É sobre reconhecer que o privilégio tomou espaço e esse deve ser reocupado por quem realmente viveu, vive e sente na pele o peso do racismo.

Você pode contribuir pesquisando, lendo sobre o assunto e compartilhando informações. Além disso, não compactue com pessoas racistas, não vote em políticos com discursos discriminatórios, assine petições, denuncie atos racista, respeite o local de fala, dialogue, pergunte, repense, caminhe ao lado.

O movimento negro no Brasil

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A constituição de 1988 foi aprovada no ano em que a abolição formal da escravidão completava 100 anos. Com esse processo de democratização do país, o movimento negro conseguiu colocar em pauta várias propostas e reinvindicações. Entretanto, ainda é possível sentir os efeitos negativos de quase 400 anos de escravidão.

Mundialmente, o Black Lives Matter (traduzindo do inglês ‘Vidas Negras Importam’) é o principal movimento a favor das vidas negras e contra o racismo. Entretanto, a luta também é histórica. Martin Luther King Jr, por exemplo, foi um dos maiores ativistas a favor dos direitos civis. No cenário internacional atual, Angela Davis, John Lewis, Spike Lee, Chimamanda Ngozi Adichie e Lewis Hamilton, piloto de fórmula 1, são alguns dos ativistas que lutam contra o racismo.

No Brasil, entre os representantes do movimento negro e outros movimentos antirracistas estão Djamila Ribeiro, Sonia Guajajara, Lélia Gonzales, Conceição Evaristo, Sueli Carneiro, Carla Akotirene, Ailton Krenak e Silvio de Almeida. Além disso, há muitos coletivos em todos os estados brasileiros. Esses foram primordiais para a conquista de vários direitos, como a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, o dia da Consciência Negra, em 2003, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e da Lei de Cotas. Embora todos esses alcances tenham sido importantes, em 2016, houve um retrocesso, quando as ações de promoção de igualdade sofreram drástica redução orçamentária.

Adjú Kariú reforça a importância da resistência no país: “tanto o movimento negro quanto o movimento indígena têm conquistado direitos muito importantes para a população negra e para os povos indígenas. Suas pautas e atuações são indispensáveis para que continuemos avançando em outras pautas consideradas urgentes para os dois grupos sociais”.

Saiba mais sobre o racismo e como ele se manifesta na sociedade

O racismo é um assunto gigante, tanto em importância quanto em conteúdo. Para entender a manifestação das práticas racistas, conhecer outros fatos históricos e praticar a reflexão crítica, assista aos vídeos abaixo:

Entenda um pouco mais sobre o que é racismo

Nesse vídeo, o canal Papo de Preta aborda a discussão sobre o racismo, explicando como ele é normalizado e estruturado dentro da sociedade. Uma conversa superdidática para assistir e refletir.

Veja como se desenrola o racismo estrutural

Nesse vídeo didático do canal Quebrando o Tabu, é possível entender como o racismo estrutural foi historicamente constituído. Confira!

Racismo contemporâneo

Conheça um cenário marcado pela banalização da violência e pelo fetichismo escravocrata. O Brasil está entre os países mais racista no mundo. Assista para entender o papel da mídia na propagação do racismo.

Combatendo o racismo nas escolas

Nesse vídeo, Gabi Oliveira conversa com Benilda de Brito. A mudança começa na educação. Além de falar sobre a realidade das crianças negras nas escolas, a pedagoga explica a importância de incluir o tema racismo na grade curricular.

O racismo existe, isso é fato. A luta é contínua e você pode fazer parte desse movimento. Seja antirracista! Mulheres negras são as maiores vítimas do feminicídio. Quem se cala diante da violência, é cúmplice. O mundo precisa de mudança.

Jornalista e mulher indígena. Integrante do coletivo de Mulheres Indígenas e Quilombolas da UFG. Faz pesquisas sobre cultura indígena e racismo. Apaixonada por gatos.